Curso da ENSP contrata pessoas com deficiência intelectual como docentes; aulas começam dia 22/9

Atualizado em 18/09/2025

Por Barbara Souza

Dez pessoas com deficiência foram selecionadas para serem facilitadores-docentes na Especialização em Qualificação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no SUS, oferecida pela ENSP/Fiocruz. O curso vai começar nesta segunda-feira (22/9), logo após o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, celebrado anualmente em 21 de setembro. A ideia é qualificar trabalhadores de saúde envolvidos na efetivação das diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Pessoa com Deficiência (PNAISPD) e das ações da RCPD. 

Fruto de parceria com a Coordenação-Geral de Saúde da Pessoa com Deficiência da Secretaria de Atenção Especializada à Saúde do Ministério da Saúde, a formação contará com 23 facilitadores-docentes, além de sete suplentes. Das pessoas com deficiência aprovadas como titulares, duas têm deficiência intelectual. Autodefensoras formadas pela Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD), Amanda Amaral Lopes, de Vitória da Conquista (BA), e Geórgia Baltieri Bergantin, de Mogi das Cruzes (SP), são mulheres com Síndrome de Down. A contratação delas como docentes de pós-graduação é algo inédito, como celebram os coordenadores do curso, Laís Costa, Gideon Borges e Marcos Besserman. 

Geórgia Baltieri Bergantin [à esquerda] e Amanda Amaral Lopes. Fotos: acervos pessoais

Os facilitadores foram selecionados após um processo seletivo que incluiu análises documental e curricular, além de uma semana de formação pedagógica presencial na ENSP. Os aprovados vão mediar o processo ensino-aprendizagem, a construção de conhecimento dos alunos, a realização de atividades didáticas por meio do processamento das situações-problemas e a avaliação, contribuindo para que os participantes construam valores e habilidades alinhados ao projeto pedagógico do curso. 


Autodefensora da pela região Nordeste, Amanda Amaral Lopes, uma mulher cis branca, é graduada em Biologia e foi selecionada, com nota máxima, para atuar no Polo de Salvador (BA) durante a Especialização. “Eu me senti muito realizada e feliz por ter sido selecionada. Essa oportunidade conta não só como um avanço pessoal, mas também como uma evolução no processo de inclusão de pessoas diversas no que diz respeito à formação acadêmica”, comemorou.

Do Polo Belo Horizonte, mestre e graduada em Serviço Social, Daiane Mantoanelli é uma mulher cis branca com baixa visão. Ela considera o curso de Especialização um marco na história do país e do SUS, destacando sua perspectiva democrática de construção de conhecimento. “Vai levar temas que até então, possivelmente, esses trabalhadores desconheciam. São discussões das quais precisam se apropriar para que sua prática profissional seja anticapacitista, a fim de transformar os territórios e eliminar barreiras para que as pessoas com deficiência exerçam seus direitos e tenham acesso a uma saúde integral e de qualidade”, disse. 

Da esquerda para a direita: Daiane Mantoanelli, Rafaele Ribeiro, Carolina Maia e Allan Bezerra. Fotos: acervos pessoais

Allan Bezerra, do Polo Fortaleza, é graduado em Computação e mestre em Tecnologia Educacional. Homem cis branco, ele também tem deficiência visual, e encara a função de facilitador-docente como um desafio para desenvolver mais habilidades enquanto contribui com seus conhecimentos na área de inclusão. “Os especializandos terão a melhor oportunidade de aprendizado para lidar com pessoas com deficiência, pois estarão em contato direto com um facilitador-docente que é um cego com baixa visão, além dos demais colegas com outras características. Acredito que a convivência é a melhor ferramenta de enfrentamento ao capacitismo, pois naturaliza nossa participação na sociedade. Ao mesmo tempo, eu terei experiências que me ajudarão a contribuir com outras atividades na área de inclusão e acessibilidade”, explicou.

A diversidade de raça e gênero também será representada entre os facilitadores-docentes. Há três pessoas trans dentre os selecionados, sendo uma delas, Thag Ferreira Santos, uma mulher surda e preta, do Polo Fortaleza. Do Polo Belém, Caroline Alves Maia, mulher trans branca, vê a atuação no curso como uma chance de adicionar mais conhecimento a sua carreira e a sua militância, além de se aprofundar nas nuances de outras regiões do país. Graduada em Pedagogia e Direito, com pós-graduação em Docência no Ensino Superior, ela afirma que há muitas conexões entre as lutas da pessoa trans e da pessoa com deficiência. 

“Ao longo da história, temos pautas convergentes. No sentido de que tanto a pessoa trans quanto as pessoas com deficiência eram desprezadas, às vezes mortas. Elas sentem na pele todos os dias as dificuldades, os preconceitos, a falta de oportunidade como a gente, principalmente quando essa pessoa com deficiência também é uma pessoa trans ou não heterossexual”, analisou ao lembrar ainda que os direitos e a vida sexual das pessoas com deficiência são ignorados. 

Do Polo Brasília, Rafaele Ribeiro, uma mulher negra, é enfermeira especializada em Bancos de Leite Humano e Amamentação e em Direitos Humanos: acessibilidade e inclusão. “Eu me interessei em ser facilitadora-docente por, além de acreditar na importância de fortalecer a RCPD com profissionais sensíveis e comprometidos com a equidade, entender que qualificar trabalhadores através das metodologias ativas é um diferencial nessa formação, trazendo a realidade para o processo de formação e o protagonismo do especializando na construção de conhecimento”, explicou. Rafaele destacou que, enquanto mulher negra, considera de “extrema relevância estar nesse espaço, já que a representatividade questiona padrões que ainda são excludentes e mostra que a diversidade da sociedade também precisa estar presente na formação”. 

O processo seletivo dos facilitadores-docentes foi além do teto usual de ações afirmativas ao dedicar cerca da metade das vagas para pessoas com deficiência, além de pessoas negras, transgêneros e travestis. A seleção também abriu vagas para indígenas, mas não houve candidatos. “Precisamos pensar em como eliminar essas barreiras da participação. Afinal, não ter uma pessoa indígena na formação da RCPD por si só contribui para continuarmos invisibilizando as necessidades de saúde do indígena com deficiência”, refletiu Laís Costa.

+ Confira na classificação final quem são os facilitadores-docentes

No total, a primeira edição da Especialização em Qualificação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no SUS tem 270 alunos matriculados em todas as regiões do país, entre trabalhadores da saúde e conselheiros. Os encontros presenciais serão realizados em doze capitais durante um ano. Como trabalho de conclusão de curso (TCC), os especializandos vão elaborar um projeto de intervenção na sua realidade local. "Isso demonstra o comprometimento do curso e da ENSP/Fiocruz com mudanças que possam ser percebidas pelos cidadãos e cidadãs", diz Laís Costa.