‘Uma só saúde’: Como a rota de disseminação na cadeia alimentar provoca a resistência a antimicrobianos?
Atualizado em 03/10/2025
Já é sabido que o uso indevido de antimicrobianos em humanos tem provocado a resistência a esses fármacos, que são utilizados no tratamento contra bactérias, fungos, parasitas e vírus. Mas poucos conhecem outro importante fator que também tem reduzido o efeito desses medicamentos e, consequentemente, impactado na eficácia da terapia farmacológica.
Um dos primeiros relatos de resistência a esses fármacos surgiu já na época da descoberta da penicilina. O primeiro caso foi registrado em 1944, apenas três anos após o início do uso clínico do medicamento. Desde então, o fenômeno foi observado com todos os outros antimicrobianos criados nas décadas seguintes.
Mas, como as bactérias se tornam resistentes? Quais são os reais motivos por trás do problema? E o que é preciso fazer para resolver essa situação? As respostas a essas perguntas permearam a palestra ‘O ambiente na disseminação da resistência antimicrobiana: desafios da era pós-antibiótico’, que aconteceu na quarta-feira (1/10) como parte da programação da II Jornada Acadêmica Discente da ENSP (JAD 2025). A atividade contou com a participação da pesquisadora e chefe do Laboratório de Bacteriologia Aplicada à Saúde Única e Resistência Antimicrobiana do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Ana Paula Assef; além da integrante do quadro funcional do Laboratório de Microbiologia do Departamento de Ciências Biológicas da ENSP, Renata Costa; e o pesquisador de pós-doutorado na Escola, Gabriel Rocha.
O que explica a resistência a antimicrobianos?
A maioria dos antimicrobianos são produzidos por microrganismos que, por estarem presentes na natureza, têm suas próprias formas de defesa e resistência. Como parte de um processo evolutivo, esses agentes microbiológicos sofrem mutações aleatórias, podendo, inclusive, transmitir esse mecanismo a outros microrganismos, tornando-se, com isso, resistentes aos antimicrobianos. E esse processo acaba, naturalmente, passando para as práticas clínicas. “Somente o fato de usarmos antimicrobianos já provoca essa ‘pressão seletiva’ de bactérias. E o seu uso indevido agrava, ainda mais, a situação”, explicou Ana Paula.
Segundo a pesquisadora, já em 2016 se estimava que 700 mil pessoas no mundo morressem por ano em decorrência de infecções provocadas por bactérias resistentes. Desse total, 75% aconteceriam em hospitais. De acordo com um estudo do Reino Unido realizado no mesmo período, em 2050 haverá 10 milhões de mortes por ano causadas pela resistência a antimicrobianos em todo o mundo, ultrapassando a prevalência de vários outros agravos. E tudo indica que essa previsão pode ter sido acertada, alertou Ana Paula: “Já em 2021, de acordo com estudos, houve 4,7 milhões de mortes associadas a bactérias resistentes”.
‘Uma só saúde’: o que é o conceito e como ele pode ajudar a enfrentar o problema?
Apesar de os hospitais serem o epicentro do pior cenário, a resistência a antimicrobianos ultrapassa esses espaços, tornando a situação ainda mais crítica. “Existem bactérias de todos os tipos, que causam uma diversidade de infecções, como do trato gastrointestinal, sexualmente transmissíveis, entre outras. Por isso, essa é uma situação geral”, observou Ana Paula.
É nesse contexto que, segundo a pesquisadora, entra o conceito de ‘Uma só saúde’, uma abordagem integrada e colaborativa que reconhece a interconexão entre as saúdes humana, animal e ambiental.
E onde essa perspectiva se encaixa no ciclo da resistência a antimicrobianos? A resposta está no uso desses fármacos fora do corpo humano, explicou Ana Paula: “Do total do uso de antimicrobianos no mundo, 70% se concentra em animais, sendo usados, em sua maioria, como promotores de crescimento. É isso que vai fazendo a pressão nas bactérias que habitam nesses animais e que, posteriormente, são lançadas em seus dejetos, usados como adubo, o que acaba contaminando o ambiente e retornando para os próprios bichos e pessoas”. A pesquisadora acredita que a adoção do conceito de ‘Uma só saúde’ é fundamental no enfrentamento ao problema, pois incita reflexões que vão muito além do uso do antimicrobiano no hospital, aumentando, assim, o esforço conjunto global.
Ao realizar sua tese de doutorado sobre colonização comunitária em viajantes (ocorrida quando bactérias estão presentes e se estabelecem em uma comunidade, sem causar necessariamente doença imediata ou sintomas), Gabriel se deu conta da complexidade do problema. Os resultados apontaram alta prevalência (26%), além de 20 perfis genotípicos distintos de bactérias.
“A dinâmica da resistência no ambiente em humanos é muito complexa e não sabemos, ainda, o impacto disso na saúde das pessoas. Apesar de estarmos bem aqui, agora, podemos ter uma bactéria resistente colonizando o nosso trato gastrointestinal. O atual impacto disso na nossa saúde talvez seja pequeno, mas, se precisarmos acessar um hospital e passar por um procedimento invasivo, por exemplo, isso nos impõe um risco maior. E, a depender das condições de saneamento básico, isso pode chegar ao ambiente. Também é preciso pensar em uma possível retroalimentação, ou seja, as pessoas que estão na comunidade levando e servindo como reservatórios e veículos da resistência para os ambientes vegetais”, frisou o pesquisador.
Os efeitos do agronegócio e possíveis soluções
Para Renata, quando o assunto envolve bactérias zoonóticas, o Brasil desempenha um forte papel nesse cenário: “O agronegócio é uma atividade forte nacionalmente, por isso, o país contribui significativamente na circulação de microrganismos”. Diante dessa conjuntura, a pesquisadora defendeu a chamada Regra dos Cinco ‘Somentes’ para o uso racional e consciente de antimicrobianos na saúde animal, promovida pela Organização Mundial de Sanidade Animal. A medida orienta a somente: usar antimicrobianos prescritos por um veterinário, utilizar os fármacos quando estritamente necessário, respeitar a dosagem e duração do tratamento prescritos, adquirir de fontes confiáveis e utilizar os medicamentos em conjunto com boas práticas de manejo e higiene.
Apesar de alguns avanços, ainda restam muitos desafios, segundo os palestrantes. Entre eles, as dificuldades e disparidades entre países no acesso a diagnósticos e tratamentos, o descarte inadequado no ambiente e as mudanças climáticas. Para os especialistas, a solução está na adoção de medidas nacionais e globais, complexas e multifacetadas, com dimensões científicas, éticas, econômicas, legais e culturais.