Você encontrará, neste tópico, os indicadores relacionados à mortalidade materna, infantil e fetal apresentados no livro-texto Vigilância do Óbito Materno, Infantil e Fetal e Atuação em Comitês de Mortalidade (BITTENCOURT; DIAS; WAKIMOTO, 2013), atualizados até o ano 2019.
As definições e os métodos de cálculo desses indicadores não sofreram alterações desde a publicação da primeira edição do livro, em 2013. Em caso de dúvida, você pode consultar os Capítulos 2, 3, 4, 5 e 6 do referido livro.
No mundo, entre 2000 e 2017, a razão de mortalidade materna (RMM) diminuiu 38%, tendo as regiões da Ásia e do norte da África apresentado as maiores reduções. As regiões da África subsaariana e da Ásia Meridional concentraram 86% das mortes maternas no ano de 2017 (ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD, 2019).
Os países que apresentavam as maiores RMM em 2017 eram Sudão do Sul, Chad, Serra Leoa, Nigéria, República Centro-Africana, Somália, Mauritânia, Guiné-Bissau, Libéria e Afeganistão. Esses países apresentaram diminuição do ritmo de queda, no referido período, para menos de 5% ao ano (ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD, 2019).
Os países com ritmo de queda anual de 7% ou mais foram: Bielo-Rússia, Cazaquistão, Timor-Leste, Ruanda, Turcomenistão, Mongólia, Angola e Estônia (ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD, 2019).
Antes de traçar a tendência da RMM no Brasil, vamos atualizar o método de cálculo da RMM. Como vimos no livro-texto do curso, no Capítulo 2, “Vulnerabilidade social e mortalidade materna no mundo e no Brasil” (JANNOTTI; SILVA; PERILLO, 2013), a subnotificação de causas de morte materna é um problema no Brasil, o que justifica a necessidade de investigação de todos os óbitos de mulheres em idade fértil (10 a 49 anos) para resgatar informações omitidas na Declaração de Óbito, com o objetivo de captar as mortes maternas não declaradas ao Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM).
Desde 2009, o Ministério da Saúde adota a RMM direta e a RMM Vigilância.
Antes da investigação de MIF, em 2019, foram notificados 1.188 óbitos maternos ao SIM. Após a investigação, o SIM passou a registrar 1.576 óbitos maternos (incremento de 32,7%). O Ministério da Saúde, utilizando a RMM Vigilância, estima que ocorreram 1.651 óbitos maternos no Brasil em 2019 (BRASIL, 2021e), o que gerou um fator de correção de 1,05 para o país, ou seja, foi estimado que 5% dos óbitos maternos ocorridos no país, não foram registrados no SIM.
No Gráfico 1, observa-se, a partir de 2012, um aumento da RMM e sua estagnação até 2017. Em 2018 e 2019, indicava-se redução da RMM, mas em decorrência da pandemia de covid-19, houve aumento de óbitos em gestantes e puérperas, e o real impacto da pandemia na RMM ainda não é totalmente conhecido.
É importante destacar que, entre os anos 1990 e o início dos anos 2000, a RMM apresentou clara tendência de redução, porém, a partir daí se estabilizou em níveis ainda muito elevados (Gráfico 2), conforme apontado no parágrafo anterior.
A pandemia de covid-19 teve um impacto relevante na mortalidade materna. Nas Américas, até 20 de agosto de 2021, houve um total de 271.230 infecções por SARS-CoV-2 entre mulheres grávidas, incluindo 2.619 mortes (0,97% de taxa de letalidade), relatadas em 30 países (PAN AMERICAN HEALTH ORGANIZATION, 2021, p. 11, tradução nossa). O Brasil destaca-se com 13.840 casos e 1.189 óbitos, e tem a maior taxa de letalidade da região: 8,59% (PAN AMERICAN HEALTH ORGANIZATION, 2021).
Segundo dados do Observatório Obstétrico Br (OOBr), desde o início da pandemia no Brasil, 1.966 gestantes e puérperas faleceram por covid-19, sendo 1.506 (76,6%) óbitos ocorridos em 2021 (OOBR COVID-19, 2021).
A preocupação com a mortalidade materna durante a pandemia de covid-19 se tornou crescente à medida que a doença passou a apresentar condições que escapavam à regra de uma síndrome respiratória clássica, mas com efeito sistêmico, pois a mortalidade materna é fortemente influenciada pelo acesso e disponibilidade de recursos de cuidado para o pré-natal, parto e puerpério. O Brasil tem desafios adicionais relacionados ao acesso à terapia intensiva, e esse fator pode ter contribuído para uma mortalidade mais elevada em gestantes. A gravidez e o puerpério podem aumentar as barreiras de acesso às unidades de saúde e condicionar a piora do atendimento clínico, pois em muitos serviços não há recursos e conhecimento técnico para o atendimento a esse público.
Um aumento da RMM associada à epidemia do H1N1 já havia sido observada no país em 2009 e aponta para a vulnerabilidade das gestantes e puérperas nesses cenários epidemiológicos, quando o aumento da demanda assistencial decorrente do elevado número de casos de doenças infecciosas agrava barreiras de acesso já existentes.
No Gráfico 2, podemos comparar a tendência da RMM no período de 1990 a 2019 para o Brasil, em relação às metas definidas pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
No período de 2009 a 2019, observou-se redução da RMM no Brasil e em todas as macrorregiões, sobretudo nas regiões Sul (-37,3%) e Nordeste (-22,9%). Os estados de Sergipe, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, e o Distrito Federal apresentaram as maiores quedas de mortalidade, em particular os dois primeiros. Por outro lado, foi observado aumento da RMM nos estados do Rio Grande do Norte, Acre, Pará, Goiás e Alagoas (Quadro 1).
A RMM é mais elevada nos extremos etários, como pode ser observado no Gráfico 3. A maternidade entre 10 e 14 anos de idade apresenta risco elevado para mortalidade, sendo a gravidez na infância uma violação de direitos da criança. Entre 20 e 29 anos, a RMM é menor do que nos demais grupos etários, porém é nesse grupo que ocorre a maioria das gestações; consequentemente, é onde, em termos absolutos, predominam as mortes maternas. Acima dos 30 anos, a RMM é crescente, sendo extremamente elevada após 45 anos de idade, resultado da frequência reduzida de nascidos vivos (denominador) nesse grupo etário materno.
A mortalidade materna segundo cor da pele da mãe passou a ser analisada a partir de 2011, em virtude da mudança de critério de informação do dado sobre raça/cor, que até 2010 era baseado na cor da pele do recém-nascido, mas depois de 2011 passou a ser referido à cor da pele declarada pela mãe. A RMM segundo cor da pele da mãe revela o risco aumentado entre as mulheres pretas, pardas e indígenas: cerca de duas vezes maior entre as mulheres da cor preta e entre aquelas de origem indígena (Gráfico 4). Claramente, se expressa a vulnerabilidade dessas mulheres em função da cor da sua pele. Pesquisa de âmbito nacional (LEAL et al., 2017) apontou que as ações de saúde não são disponibilizadas de forma a reduzir as desigualdades étnicas existentes no país; discriminações raciais nos serviços de saúde ocorrem tanto na esfera do acesso dificultado quanto na qualidade do cuidado prestado.
Antes de discutirmos as causas de morte materna, é importante avaliar a qualidade dos registros sobre causas de morte registradas no SIM. Essa qualidade é medida pela proporção de códigos garbage (CG), ou seja, “ [...] causas que não seriam as básicas do óbito ou seriam pouco específicas, sendo, portanto, pouco úteis para se pensar a prevenção” (FRANÇA, 2019).
A causa básica é definida como a doença ou lesão que iniciou uma sucessão de eventos e que termina com morte; ou nos casos de acidentes ou violências, as circunstâncias em que ocorreram.
Para as mortes maternas, essas causas inespecíficas mais frequentes referem-se aos seguintes conjuntos de códigos:
Como pode ser observado na Tabela 1, a proporção de códigos garbage de 2015 a 2019 oscilou de 2,6% a 4,4 %.
Em relação às regiões do país, com exceção da Região Sul, todas apresentaram proporção menor que 10%, como pode ser observado na Tabela 2. Valor acima de 10% indica que os dados de causa de mortalidade devem ser interpretados com cautela.
A análise de códigos garbage é uma importante estratégia para incentivar a melhoria da qualidade da informação, que inclui tanto a investigação desses óbitos quanto o treinamento dos médicos para o preenchimento adequado da Declaração de Óbito (DO).
A distribuição das mortes maternas segundo o tipo de causa materna – direta e indireta – evidencia o predomínio das causas obstétricas diretas, em especial, eclampsia, hipertensão gestacional/proteinúria significativa, hemorragia pós-parto e a infecção puerperal (Gráfico 5).
As causas obstétricas indiretas representaram, em média, entre 2008 e 2019, cerca de 1/3 dos casos. As categorias mais prevalentes entre as causas indiretas foram: outras doenças maternas complicando a gravidez, parto ou puerpério; doenças infecciosas parasitárias maternas complicando a gravidez, parto ou puerpério; hipertensão preexistente complicando a gravidez, parto ou puerpério; doença por HIV resultando em doenças infecciosas e parasitárias.
Observou-se redução das causas obstétricas diretas – em torno de 7% de queda – e aumento de 20% das causas indiretas (Gráfico 6).
Segundo a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), as principais causas de morte materna no país, no ano de 2019, foram: O99 Outras doenças maternas que constam em outras partes, complicando a gravidez, parto ou puerpério; O15 Eclampsia; O14 Hipertensão gestacional com proteinúria significativa; O72 Hemorragia pós-parto; e O88 Embolia de origem obstétrica. Essas cinco causas correspondem à metade das causas de morte materna.
Em todas as regiões do país, o conjunto de todas as causas indiretas ocupa a primeira posição, o que corresponde ao CID – O99. Apenas três causas diretas – eclampsia, hipertensão gestacional e a hemorragia pós-parto – predominam em todas as regiões. Na Região Sudeste vale destacar a embolia de origem obstétrica, a morte obstétrica de causa não especificada e as complicações do puerpério que não constam em outra parte (Gráfico 7).
As mortes maternas são eventos de pequenos números, ou seja, sua ocorrência é rara. Em municípios pequenos, ou no âmbito dos serviços de saúde, a ocorrência é menor ainda e intermitente. Em função dessa particularidade, a RMM calculada varia muito e as análises estatísticas apresentam limitações. Além disso, a identificação de problemas e a proposição de melhorias da qualidade da atenção obstétrica baseada apenas nos resultados da investigação de óbitos torna-se limitada, em decorrência do pequeno número de óbitos.
O estudo do NMM tem sido recomendado como uma estratégia complementar para a redução da mortalidade materna, por ser mais frequente e compartilhar dos mesmos determinantes do óbito materno.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a utilização de critérios padronizados para a classificação de casos de NMM, baseados no conceito de disfunção orgânica. Quando a mulher apresenta um dos critérios clínicos, laboratoriais ou de manejo propostos pela OMS, ela é classificada como um caso de near miss materno (Quadro 2).
No mundo, a morte de menores de 1 ano decaiu à metade entre 2000 e 2019, mas a intensidade dessa redução foi desigual entre as regiões e, em alguns países, como na Venezuela, não ocorreu.
Como se pode observar na Tabela 4, a variação percentual da taxa de mortalidade infantil (TMI) revela pontos de partida muito distintos, que expressam as iniquidades no desenvolvimento social e humano. Embora no período tenham sido observadas expressivas reduções nas taxas, os níveis alcançados, em grande parte dos países, ainda são extremamente elevados, muito além dos valores daqueles apresentados por países como Islândia, Suécia, Japão e Portugal.
A evolução da TMI, entre os anos de 2010 e 2019, reflete a repercussão das crises políticas e econômicas que se instalaram no país a partir de 2014-2015. A tendência de queda é revertida entre os anos de 2015 e 2016 – passando de 13,3 para 14 por mil nascidos vivos. Entre 2016 e 2018, é retomada a redução, porém, entre 2018 e 2019, a TMI cresce discretamente, voltando aos níveis observados em 2015: 13,3/1.000 nascidos vivos (Gráfico 8).
As maiores reduções da TMI, entre 2010 e 2019, foram observadas nas regiões Norte (-21%), Nordeste (-20%) e Centro-Oeste (-18%). Essas regiões apresentavam, e ainda mantêm, as TMI mais elevadas. As regiões Sul e Sudeste apresentaram reduções de 12% e 11%, respectivamente (Gráfico 9) (BRASIL, 2021d).
Na Figura 2, podemos verificar que existem desigualdades intrarregionais da TMI no país, com UF das regiões Norte e Nordeste apresentando aumento da TMI entre 10% e 21%, apesar da queda do valor desse indicador nas respectivas regiões.
A investigação dos óbitos de menores de 1 ano possibilitou qualificar as causas de morte e, desse modo, aumentar a compreensão dos determinantes e condicionantes relacionados às mortes de menores de 1 ano.
No ano 2000, a proporção de 25% de mortes por causas mal definidas inviabilizava o conhecimento da real distribuição dos óbitos infantis segundo causa. A partir da introdução das rotinas de investigação epidemiológica das causas mal definidas em 2006, todas as regiões do país atingem patamares abaixo de 5% (Gráfico 11).
A redução da proporção das causas mal definidas é um importante resultado, mas torna esse indicador insuficiente para o monitoramento da qualidade de preenchimento das declarações de óbito. Nesse sentido, o estudo dos códigos garbage assume especial relevância, pois possibilita a identificação de condições mórbidas inespecíficas, como insuficiência respiratória, paradas cardiorrespiratórias, septicemia, que impedem a avaliação da causa básica da morte e seus determinantes. Essa avaliação permite a adoção de medidas adequadas que objetivam a melhoria do cuidado e a redução dos óbitos infantis.
O conjunto de códigos garbage relacionados às mortes de menores de 1 ano, além daquelas por causas mal definidas, inclui vários CID-10 que representam muito mais causas consequentes do que condições que permitam melhor definição das causas básicas de morte.
A distribuição das causas de mortalidade de menores de 1 ano mantém o predomínio das afecções originadas no período perinatal diante das demais. Em relação às causas infecciosas, a sobremortalidade por causas perinatais cresceu entre 2010 e 2019, mantendo-se estável para as doenças do aparelho respiratório (Gráfico 12). Por outro lado, observamos o crescimento das malformações congênitas, ao redor de 9%, entre 2010 e 2019.
Quanto às causas evitáveis, na Tabela 5a, observa-se no Brasil, em 2019, um percentual elevado de óbitos infantis decorreu de por causas evitáveis: 74,3% entre os menores de 6 dias, 70,8% no período neonatal tardio.
Causas evitáveis são causas associadas tanto ao acesso e à utilização dos serviços de saúde, como à qualidade da assistência pré-natal, ao parto e ao recém-nascido. Óbitos por causas evitáveis são definidos como eventos-sentinela da qualidade da atenção médica e do sistema de saúde, dado que a possibilidade de intervenção sobre a sua ocorrência concentra-se cada vez mais na capacidade de atuação dos serviços de saúde.
A partir desse conceito, especialistas de diferentes áreas desenvolveram a Lista Brasileira de Causas de Morte Evitáveis (MALTA et al.,2010) para menores de 5 anos de idade por intervenções no Sistema Único de Saúde. A lista é dividida em três grupos (evitáveis, não claramente evitáveis e mal definidas) e em subgrupos segundo o tipo de intervenção.
No período pós-neonatal, embora se observe uma redução no percentual de contribuição das causas evitáveis no conjunto de óbitos, estas continuam expressivas, em torno de 50%.
A Tabela 5a também apresenta a distribuição dos óbitos neonatal precoce, neonatal tardia e pós-neonatal segundo subgrupos de causas evitáveis.
Observa-se que, no período neonatal precoce, destacam-se dois subgrupos de causas evitáveis: “Atenção à mulher na gestação” (53,3%) e “Atenção ao recém-nascido” (25,7%), seguidos de “Atenção à mulher no parto” (19,9%). No período neonatal tardio também se destacaram esses três subgrupos, mudando a ordem de importância para “Atenção ao recém-nascido” (45,2%), seguido pela “Atenção à mulher na gestação” (39,8%) e “Atenção à mulher no parto” (10,2%). No período pós-neonatal, os principais subgrupos compreendem as causas “Reduzíveis por ações adequadas de diagnóstico e tratamento” (41,3%) e as “Reduzíveis por ações adequadas de promoção à saúde” (27,0%).
Como se pode observar na Tabela 5b, entre os óbitos evitáveis por “Atenção à mulher na gestação”, 59,1% das causas corresponderam às afecções maternas que afetaram o recém-nascido, a síndrome da angústia respiratória do recém-nascido e transtornos gestacionais de curta duração e peso baixo ao nascer. São causas que podem indicar a ocorrência de falhas tanto no processo de assistência pré-natal – no controle de infecções e de outros riscos na gravidez – e na prevenção da prematuridade relacionada à interrupção indevida da gravidez, como as cesarianas sem indicação.
Para o subgrupo “Atenção ao recém-nascido”, as duas principais causas – transtornos respiratórios específicos do período perinatal e infecções específicas do período neonatal, exceto síndrome da rubéola congênita e a hepatite viral congênita – corresponderam a 80% dos óbitos desse grupo. Essas causas refletem a ausência de acesso ou deficiência no cuidado intensivo neonatal após o parto (Tabela 5b).
No subgrupo “Atenção à mulher no parto” destaca-se a asfixia/hipóxia (41,7%), causa estritamente relacionada à assistência hospitalar ao parto e nascimento. Embora a quase totalidade dos partos seja realizada em hospitais por profissionais habilitados, a ocorrência desse tipo de óbito indica monitoramento inadequado do trabalho de parto e/ou atraso na assistência à gestante, além de deficiências na reanimação e assistência neonatal (Tabela 5b).
A persistência da pneumonia e de doenças bacterianas “reduzíveis por ações adequadas de diagnóstico e tratamento”, das doenças infecciosas intestinais, e das deficiências nutricionais “reduzíveis por ações adequadas de promoção à saúde”, entre as causas evitáveis do período pós-neonatal, representa um sinal de alerta em relação a prováveis problemas no acesso oportuno a serviços qualificados de saúde e nas ações intersetoriais que visam à redução das desigualdades em saúde (Tabela 5b).
Uma definição de caso de near miss neonatal, validada em duas bases de dados de estudos conduzidos pela Organização Mundial da Saúde (PILEGGI-CASTRO et al., 2014), tem sido recomendada para uso na América Latina (SANTOS et al., 2015).
Segundo essa definição, um recém-nato é classificado como caso de near miss neonatal se apresentar um dos critérios pragmáticos ou de manejo mostrados no Quadro 3.
Os indicadores propostos para avaliação do NMN incluem:
Como apresentado no livro-texto do curso, no Capítulo 4, Mortalidade fetal: mortes invisíveis e evitáveis, a Organização Mundial da Saúde define morte fetal, óbito fetal, perda fetal ou natimorto como
a morte de um produto da concepção, antes da expulsão ou da extração completa do corpo da mãe, independentemente da duração da gravidez. Desse modo, ele pode ocorrer durante a gestação, antes de a gestante entrar em trabalho de parto, ou durante o trabalho de parto. Essa definição indica o fato de o feto, depois da separação, não respirar nem apresentar nenhum sinal de vida, como batimentos do coração, pulsações do cordão umbilical ou movimentos efetivos dos músculos de contração voluntária.
Óbitos fetais são classificados na CID-10 como:
O cálculo da taxa de mortalidade fetal deve incluir todos os óbitos fetais precoces e tardios, ou seja, todos aqueles ocorridos com idade gestacional de 22 semanas ou mais, ou peso de 500 g ou mais, ou com comprimento fetal de 25 cm ou mais. Entretanto, para fins de comparação internacional, apenas os óbitos tardios são utilizados.
Para a classificação das perdas fetais, deve-se priorizar a idade gestacional em relação a peso, por ser melhor preditor da maturidade e viabilidade fetal, além de ser a informação mais disponível globalmente. Quando a ultrassonografia precoce estiver disponível, esse método de estimação da IG deve ser preferível em relação à DUM. A proposta é que na próxima revisão da CID-10, o critério comprimento fetal não seja mais utilizado.
Em 2019, estimou-se a ocorrência mundial de dois milhões de natimortos tardios, com uma taxa de mortalidade fetal global de 13,9 por mil nascimentos. As taxas variaram de 22,8 na África Central e Ocidental a 2,9 na Europa Ocidental (Figura 3).
Cerca de 98% dos óbitos fetais ocorrem em países de renda baixa ou média, com ¾ ocorrendo na região subsaariana e no sul Asiático. Em 2019, mais de um terço dos óbitos fetais globais ocorreram em três países: Índia (17,3%), Paquistão (9,7%) e Nigéria (8,7%), Aproximadamente 60% dos óbitos fetais ocorrem em áreas rurais e as maiores taxas de mortalidade fetal são registradas em regiões de conflito. Na América Latina, a taxa de mortalidade fetal estimada para 2019 foi de 7,9 por mil nascimentos.
No período 2000-2019, o número global de óbitos fetais apresentou uma redução de 31,7%. Entretanto, a taxa de redução anual no período 2010-2019 foi estimada em 2,3%, inferior à redução percentual da mortalidade neonatal (2,9%) e da mortalidade em crianças de 1 a 5 anos (4,3%) no mesmo período, e da redução da razão de mortalidade materna no período 2000-2017 (2,9%) (Gráfico 13). A ausência de metas globais objetivas para a redução da mortalidade fetal explica a diferença na velocidade de redução dessa taxa, em comparação com a redução verificada na mortalidade infantil e materna, e demonstra a importância desta iniciativa para acelerar mudanças.
A mortalidade fetal não foi incluída nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, nem nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, mas está contemplada no Every newborn action plan, plano lançado em 2014 pela Organização Mundial da Saúde para eliminar óbitos fetais e infantis evitáveis. O plano tem como meta alcançar uma taxa de mortalidade fetal igual ou inferior a 12 por mil nascimentos, em todos os países, em 2030 (WORLD HALTH ORGANIZATION, 2014a).
Para alcançar esse objetivo, a redução global da taxa de mortalidade fetal deve ser de 4,2%, o dobro da observada no período 2010-2015. Entretanto, não houve aceleração do progresso de redução da mortalidade fetal desde o ano 2000: a taxa de redução anual foi de 2,4% no período 2000-2009 e de 2,1% no período 2010 a 2019 (HUG et al., 2021).
Ressalta-se, ainda, que essa taxa global esconde variações regionais importantes. Como se pode notar no Gráfico 14, desde o ano 2000, 114 países tiveram redução da mortalidade fetal, com quatro países reduzindo sua taxa à metade; 28 países tiveram redução de 25%; 50 países uma redução de 10% ou mais; e 32 países uma redução inferior a 10%. Em 80 países não houve qualquer mudança na taxa de mortalidade fetal desde o ano 2000, estando 33 deles localizados na África subsaariana, 16 na Ásia Oriental e Pacífico, e 15 na América Latina e Caribe (HUG et al., 2021).
A África subsaariana apresenta as maiores taxas de mortalidade fetal e a menor taxa de redução. Com as taxas atuais, mulheres residentes nessa região levarão 160 anos para alcançar as taxas observadas nos países desenvolvidos em 2015. Em 2019, 128 países já haviam alcançado a meta de taxa de mortalidade fetal igual ou menor que 12 por mil nascimentos, com 55 países tendo taxa de mortalidade fetal inferior a 5 por mil, a maioria localizada na Europa, Ásia Central e América do Norte (HUG et al., 2021).
Existem problemas na notificação do óbito fetal, seja pela definição do óbito fetal como aborto, levando à subnotificação, seja pela notificação como óbito fetal dos nascidos vivos muito prematuros, o que aumenta o registro de óbitos fetais. Essas situações dificultam o planejamento de ações de saúde e sua efetividade na redução da ocorrência de óbitos fetais e neonatais.
Para avaliar a notificação dos óbitos fetais, pode-se calcular a razão mortalidade fetal/mortalidade neonatal. Globalmente, essa razão aumentou de 0,70, no ano 2000, para 0,79, no ano 2019. Essa razão foi superior a 1 na Europa ocidental (1,24), em 2019, seguida pelo leste Asiático e Pacífico (0,97) e Europa Oriental e Ásia Central (0,84); e mais baixa na África Central e Ocidental (0,74) e sul da Ásia (0,72) (Gráfico 15). As maiores razões mortalidade fetal/mortalidade neonatal são observadas nos países com taxas de mortalidade fetal mais baixas. Estudos anteriores encontraram razão mortalidade fetal/mortalidade neonatal superior a 1 em diferentes contextos de mortalidade, com tendência de aumento dessa razão à medida que as taxas de mortalidade fetal e neonatal declinam (HUG et al., 2021).
No mundo, os principais fatores modificáveis que poderiam reduzir a mortalidade fetal são: idade materna maior que 35 anos; infecções maternas (principalmente sífilis e malária); doenças crônicas, fatores nutricionais e hábitos de vida; e gestação prolongada (LAWN et al., 2016). Globalmente, em 2019, 42% dos óbitos fetais ocorreram intraparto, e poderiam ser evitados com melhorias na atenção ao parto, o que também contribuiria para a redução da mortalidade materna e neonatal. Na Europa Ocidental e na América do Norte, cerca de 6% dos óbitos fetais ocorrem intraparto, enquanto nos países da África subsaariana esse valor é de aproximadamente 50%. Quase 90% dos óbitos fetais intraparto, no mundo, ocorreram na África subsaariana e no sul da Ásia, revelando as desigualdades no acesso a serviços de atenção ao parto de qualidade.
No período 2010-2019, houve redução de 11,2% da taxa de mortalidade fetal no país, mostrando-se mais intensa no período 2016-2019 (Gráfico 16). Apesar dessa redução, a taxa de mortalidade fetal tardia, utilizada para comparações internacionais, foi de 5,9 por mil nascimentos em 2019, o dobro da observada nos países desenvolvidos nesse mesmo ano (2,9 por mil nascimentos nos países da Europa Ocidental e 3,0 por mil nascimentos nos países da América do Norte).
As taxas mais elevadas foram observadas nas regiões Nordeste e Norte, com pequeno aumento na região Norte (9,8 para 10,2 por mil nascimentos), a única região com aumento da mortalidade fetal no período. Deve-se ressaltar que as regiões Norte e Nordeste apresentam sub-registro de óbitos e registros em atraso no Sistema de Informações sobre Mortalidade, devendo essa análise ser feita com cautela (DATASUS, 2022b).
A maior redução da taxa de mortalidade fetal foi observada na região Sul, que já apresentava a taxa mais baixa em 2010 (DATASUS, 2022b).
Ainda há sub-registro de óbitos fetais no Brasil, apesar da obrigatoriedade legal do preenchimento do atestado de óbito, reforçada pela Resolução do Conselho Federal de Medicina n. 1.779, de 11 de novembro de 2005, que estabeleceu:
Em caso de morte fetal, os médicos que prestaram assistência à mãe ficam obrigados a fornecer a Declaração de Óbito quando a gestação tiver duração igual ou superior a 20 semanas, ou o feto tiver peso corporal igual ou superior a 500 gramas e/ou comprimento fetal igual ou superior a 25 cm.
Conforme pode ser visto na Tabela 6, a razão óbito fetal/óbito neonatal no período 2010-2019 permaneceu estável e próxima a 0,66. A razão óbito fetal/óbito neonatal tende a ser maior que 1 em países desenvolvidos e tende a aumentar à medida que as taxas de mortalidade fetal e neonatal declinam.
Quanto à qualidade do registro dos óbitos fetais na declaração de óbito no período 2010-2019, houve melhoria, com redução da proporção de óbitos fetais com idade gestacional, peso ao nascer e momento do óbito ignorados (Gráfico 17). Em 2019, a proporção de ignorado para essas três informações foi de 7,7%, 6,3% e 5,3%, respectivamente.
Entretanto, para a análise das causas de óbito, o preenchimento da DO ainda apresenta limitações. No período 2010-2019, as principais causas de óbito fetal foram as afecções originadas no período perinatal, algumas doenças infecciosas e parasitárias e mal formações congênitas (Gráfico 18).
Do total de causas de óbito, uma elevada proporção pertence às causas “P20 – Hipóxia intrauterina” e “P95 – Morte fetal de causa não especificada”, do grupo das afecções originadas no período perinatal. Embora tenha havido uma discreta redução da proporção dessas causas no período 2010-2019 (Gráfico 19), juntas elas somaram 43% das causas dos óbitos fetais em 2019. Ambas são causas pouco específicas e representam códigos garbage, não permitindo a identificação do momento do óbito (anterior ao parto ou intraparto) e dificultando a elaboração de estratégias direcionadas para sua prevenção.
Para os óbitos fetais, os códigos garbage, em sua totalidade, são de dois grupos de causas: “P90-P96 – Outros transtornos originados no período perinatal; e grupos relacionados ao capítulo das malformações congênitas” e “Q80-Q89 – Outras malformações congênitas”.
A proporção de óbitos por doenças infecciosas triplicou no período 2010-2019, passando de 0,48% a 1,58%. Esse aumento é decorrente principalmente do maior número de óbitos fetais pela sífilis congênita, considerada um evento sentinela da qualidade da assistência pré-natal, por ser evitável com os recursos diagnósticos e terapêuticos disponíveis. No período analisado, houve também um aumento de 11% do número absoluto de óbitos fetais por malformação congênita, com aumento da distribuição proporcional desses óbitos de 5,4% para 6,5%.
Quanto à evitabilidade dos óbitos fetais, houve pouca modificação no período 2010-2019. A maioria dos óbitos ocorreu em momento anterior ao parto, sendo 4% declarados como óbitos intraparto, com pouca variação no período analisado. Óbitos intraparto podem ser evitados com melhorias na qualidade da assistência ao trabalho de parto e parto, e sua contribuição para a mortalidade fetal varia com o grau de desenvolvimento do país.
No Brasil, embora avanços tenham sido observados na qualidade dessa atenção, tanto no setor público como no setor privado, persiste o uso excessivo de intervenções obstétricas, incluindo a cesariana, e o acesso ainda não universal às boas práticas de atenção. É possível, portanto, que a baixa proporção de óbitos intraparto seja decorrente de falhas no registro desses óbitos, limitando uma análise mais fiel sobre a realidade da assistência obstétrica com relação aos óbitos fetais no país.
Para a prevenção dos óbitos ocorridos antes do parto, a principal estratégia é a melhoria da atenção pré-natal, tanto na atenção básica, para as gestantes de risco habitual, quanto no pré-natal de alto risco, visando melhor controle das doenças maternas preexistentes e das intercorrências clínicas e obstétricas diagnosticadas durante a gestação:
Cabe ressaltar que cerca de 1/4 dos óbitos fetais são precoces, ocorrendo entre 22-27 semanas gestacionais, proporção um pouco inferior à observada em países desenvolvidos, onde os óbitos precoces correspondem a 1/3 do total de óbitos fetais (HUG et al., 2021). Os óbitos fetais entre 22 e 27 semanas são os que provavelmente têm mais problemas de registro, seja por classificação errada de um nascido vivo como nascido morto, aumentando o registro de nascidos mortos, seja pela dificuldade de definir a idade gestacional e o peso, acarretando classificação da perda fetal como um abortamento. É importante, portanto, a melhoria global da vigilância dos óbitos fetais, incluindo tanto as perdas precoces quanto as tardias.
Conclusão: embora tenha havido uma redução da taxa de mortalidade fetal no período 2010-2019, e uma pequena melhoria no registro das informações disponíveis na declaração de óbito, a taxa de mortalidade fetal no país é ainda alta, com elevada proporção de fetos viáveis, sendo quase 50% dos óbitos determinados por causas pouco específicas, o que dificulta a elaboração de medidas de controle.
Globalmente, a prevenção da mortalidade fetal persiste como desafio, acometendo desproporcionalmente países da África subsaariana e do sul da Ásia, sendo necessários esforços de melhoria do registro desses óbitos e a implantação de medidas de prevenção já disponíveis.