Pesquisa de doutorando da ENSP/Fiocruz relaciona calor extremo à mortalidade no Rio
Atualizado em 13/02/2025
Estudo inovou ao criar métrica que considera o impacto cumulativo à saúde humana do tempo de exposição a altas temperaturas
Por Barbara Souza
O forte calor do Rio de Janeiro não é apenas atrativo para ir à praia ou razão de desconforto e estresse para quem não tem como se refrescar. As altas temperaturas pelas quais a cidade maravilhosa é conhecida estão relacionadas ao aumento de mortalidade na capital fluminense. É o que mostra pesquisa realizada pelo doutorando da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) João Henrique de Araujo Morais. O estudo conduzido pelo aluno do Programa de Epidemiologia em Saúde Pública aponta que o risco é maior para idosos e pessoas com algumas doenças. No trabalho, foram analisados todos os 466 mil registros de mortes naturais ocorridas entre 2012 e 2024, e mais de 390 mil mortes por 17 causas selecionadas - das quais, 12 tiveram alta considerável da mortalidade para idosos no calor extremo.
Foi observado que o calor representa maior risco para idosos e pessoas com doenças como diabetes e hipertensão, além de Alzheimer, insuficiência renal e infecções do trato urinário. Araujo afirma que isso já era esperado. “Esses resultados dialogam com a literatura existente sobre o tema. A maioria dos estudos sobre calor e mortalidade concentra suas análises em doenças cardiovasculares e respiratórias, sobre as quais os efeitos fisiológicos no corpo humano são bem conhecidos. Todavia, há estudos que relatam esses efeitos também para doenças metabólicas, do trato urinário e doenças como Alzheimer, sobre as quais dissertamos na discussão do artigo. Alguns estudos mostraram essa relação também para Neoplasias, o que não foi encontrado no estudo”.
Os resultados do estudo acendem um alerta. Afinal, em meio ao agravamento das emergências climáticas, os dois últimos anos foram os mais quentes da história no Rio. E 2024 foi o primeiro a ultrapassar a marca 1,5 °C de aumento na temperatura média da Terra em relação aos níveis pré-industriais, segundo o Copernicus, Programa de Observação da Terra da União Europeia.
Nesse sentido, João Henrique de Araujo ressalta a necessidade de planos de adaptação das cidades para os efeitos das mudanças climáticas. “Outros estudos já mostraram o aumento de frequência e intensidade das ondas de calor não só para o município do Rio, mas para diversas áreas urbanas do Brasil. Medidas individuais são importantes, mas é necessário ter políticas públicas que adequem as atividades e protejam a população. Sabe-se que populações específicas estão em alto risco - como trabalhadores diretamente expostos ao sol, populações de rua, grupos mais vulneráveis (crianças, idosos, pessoas com doenças crônicas), e populações que vivem nas chamadas Ilhas de Calor Urbano. Assim, espera-se que ações tomadas no Protocolo de Calor do Município do Rio, como disponibilização de pontos de hidratação e resfriamento, adaptação de atividades de trabalho, comunicação constante com a população e suspensão de atividades de risco em níveis mais críticos sejam difundidas e adotadas também em outros municípios, com o objetivo de proteger a saúde da população, sobretudo dos mais vulneráveis”.
Métrica inovadora
A pesquisa desenvolveu nova forma de medir a exposição ao calor e os riscos relacionados, com a criação de uma métrica chamada "Área de Exposição ao Calor" (AEC), que considera também o tempo que uma pessoa fica exposta ao calor, algo que outras medidas, como temperatura média ou sensação térmica média, não levam em conta. De acordo com o estudo, o tempo de exposição ao calor intenso tem uma ligação importante com a mortalidade, especialmente entre as pessoas mais vulneráveis. Para os idosos, por exemplo, a exposição a uma AEC de 64ºCh aumenta em 50% o risco de morte por causas naturais, e com uma AEC de 91,2°Ch, o risco dobra.
Para explicar o que isso significa, o estudo lembra a onda de calor de novembro de 2023. Em 17 de novembro, dia em que a jovem Ana Clara Benevides morreu após passar mal no estádio Nilton Santos, onde a cantora Taylor Swift se apresentou, o índice de calor no Rio ficou acima de 44°C por oito horas, gerando um recorde de AEC. No dia seguinte, 18 de novembro, foi registrado o maior número de mortes de idosos por causas específicas: 151 no total.
Portanto, a pesquisa oferece uma ferramenta que se mostrou mais eficiente do que outras métricas para identificar dias de calor extremo e, assim, auxiliar na prevenção das possíveis consequências. O estudo compara duas datas para mostrar como a AEC funciona. Em 12 de janeiro de 2020, o índice de calor foi de 32,69 °C, enquanto em 7 de outubro de 2023 foi de 32,51°C — quase iguais. Porém, no segundo dia, o calor durou mais tempo, resultando em uma AEC de 55,3°Ch, que é 20 vezes maior que os 2,7°Ch do primeiro dia. Isso mostra o impacto do tempo de exposição ao calor na saúde humana.
Figura 4 do artigo compara dois dias que tiveram IC médio parecido, mas em que um deles a Área de Exposição ao Calor foi 20 vezes maior
“Ao considerar apenas medidas-resumo (médias ou máximas) podemos subestimar dias anormalmente quentes. A métrica, por sua vez, consegue identificar isso e pode ser utilizada para definição de protocolos similares ao desenvolvido aqui no Rio. Quando comparamos a performance dos modelos, ou seja, o quão bem conseguiram explicar a mortalidade, vemos que incluir os modelos utilizando a métrica AEC tiveram a melhor performance para 13 das 17 causas estudadas”, explica o doutorando.
Saiba mais
João Henrique de Araujo Morais atua como pesquisador do Centro de Inteligência Epidemiológica (CIE), da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Mestre em Epidemiologia pela ENSP, ele desenvolve sua pesquisa de doutorado sob a orientação do professor do Programa de Epidemiologia e Saúde Pública da Escola e pesquisador do Programa de Computação Cientifica (PROCC/Fiocruz), Oswaldo Gonçalves Cruz, que é um dos autores do estudo.
O artigo “Quantificando a exposição ao calor e sua mortalidade relacionada na cidade do Rio de Janeiro: evidências para apoiar o recente protocolo de calor do Rio” (tradução livre) foi publicado como preprint na plataforma MedRxiv e foi submetido a revistas científicas internacionais. O trabalho está disponível, acesse aqui.
Confira outros destaques da entrevista concedida por João Henrique ao Informe ENSP:
Qual é a relação que a pesquisa encontrou entre a exposição ao calor e o excesso de mortalidade?
João Henrique de Araujo: Foram utilizadas várias formas de quantificar dias quentes: Temperatura média, Índice de Calor médio, Número de horas acima de determinadas faixas de calor, e a nova métrica AEC. Em todos os cenários, associação entre exposição ao calor e aumento na mortalidade foi observada para a maioria das causas, e principalmente entre idosos.
Tratando de causas naturais de óbito (todas as causas exceto as causas externas), vimos que dias com Temperatura média de 30°C ou Índice de Calor (IC) médio de 35,2°C levam a um aumento de 50% na mortalidade entre idosos. Esse mesmo aumento foi observado também entre os jovens em dias com IC médio de 38,7°C (Tabela 3 do artigo).
De forma similar, esse aumento de 50% de mortalidade em idosos pode ser atingido em dias com 6 horas acima de 40°C, 3 horas acima de 44°C, ou quando a métrica AEC atinge 64°C*h (Figuras 3 e 6 do artigo). Ou seja, podemos explorar diferentes formas de quantificar a exposição ao calor e relacioná-la com limiares de risco de mortalidade, entre jovens e idosos.
Essa mesma análise foi realizada para causas naturais (grupo mais abrangente) e causas específicas (Diabetes, doenças hipertensivas, etc.). Assim, podemos comparar entre quais causas essa associação foi mais forte.
Dos 17 grupos de causas de morte analisados, 12 apresentaram alta considerável da mortalidade para idosos no calor extremo. Quais foram?
João Henrique de Araujo: Causas que apresentaram associação significativa com altos índices de calor (IC) entre idosos: Influenza/Pneumonia (J09-J18); Doenças hipertensivas (I10-I15); IAM (I20-I25); AVC (I60-I69); outras doenças do aparelho circulatório (I00–I09, I26–I49, I51, I52, I70–I99); Alzheimer/Demência (G30, G31, F01, F03); Diabetes (E10-E14); Falência Renal (N17-N19); Infecção do Trato Urinário (N39); Causas indeterminadas (R00-R99); Causas selecionadas (todas as causas específicas incluídas no estudo); Causas naturais (Todas as causas exceto as externas (S00-Y99)).
As outras causas analisadas, sobre as quais não foi encontrada associação entre altos ICs e mortalidade em idosos, foram: Respiratórias crônicas inferiores (J40-J47); Outras doenças respiratórias (J00–J06, J20–J39, J60–J70, J80–J86, J90–J96, J97–J99, R09.2, U04); Insuficiência cardíaca (I50); Neoplasias (C00-C97); Sepse (A40-A41).
No artigo comenta-se possíveis motivos para a ausência de associação encontrada. Cita-se a baixa contagem de óbitos por algumas dessas causas, ou a recomendação do Ministério da Saúde de não utilização desses códigos para causa básica de óbito (Garbage Codes).