Módulo 2 – Saúde na agenda de desenvolvimento sustentável

A agenda de desenvolvimento global, justiça e racismo ambiental

Quem acredita em crescimento infinito em um planeta fisicamente finito, ou é louco, ou é economista.
(ATTENBOROUGH,2020)

A frase de abertura, usada como epígrafe, expressa muito das impressões que os cientistas de diferentes áreas do conhecimento sempre tiveram em relação ao debate econômico, principalmente após a Segunda Guerra Mundial.

Quantas vezes você já não escutou a preocupação das autoridades sobre o baixo crescimento do PIB? Aliás, você sabe o que é PIB? Assista ao vídeo PIB: o que é, para que serve e como é calculado, da série IBGE Explica.

Essa é a aposta de muitos países da América Latina que protagonizam o processo de decolonialismo e retomada dos saberes e princípios das comunidades tradicionais. Entende-se por decolonialismo o caminho para resistir e desconstruir padrões, conceitos e perspectivas impostos aos povos subalternizados e colonizados. Esse conceito abre espaço para um conjunto de discussões bastante relevantes, que têm a ver com o respeito à natureza, com a compreensão de justiça e de racismo ambientais.

O Bem viver e a natureza como sujeito de direitos

Crédito: Espacio Aberto

Como centro dessa discussão no continente, estão as ideias da pachamama e do buen vivir (que vamos detalhar ao longo desta seção), nas quais a natureza passa a ser vista como sujeito de direitos (e não mais apenas como objeto), ressaltando a dependência entre a diversidade cultural e a diversidade biológica, o ser social e o ambiente em que ele habita.

Reconhecer a natureza como sujeito de direitos gera uma mudança nas formas de julgamento de questões ambientais (e suas consequências sociais) dentro do âmbito jurídico e, consequentemente, nos aspectos relacionados à gestão, à conservação, à sustentabilidade e à saúde ambiental.

Como traz Amelia Gonzalez (2016), a partir dos acúmulos do livro de Alberto Acosta (2016), o “Bem viver” chama atenção para algumas armadilhas, como o “mercantilismo ambiental exacerbado há várias décadas e que não contribuiu para melhorar a situação”. Segundo a autora:

entram aí os conceitos de "economia verde", "desenvolvimento sustentável", "indicadores ambientais e sociais" que surgem em profusão, criando novos conceitos e métodos, mas não necessariamente gerando melhorias para a sociedade nem mesmo proteção para a natureza (GONZÁLEZ, 2016).

Utilizamos em vários projetos e iniciativas a ideia de “bem viver”, mas pouco sabemos sobre suas origens. A base do pensamento do “bem viver” é indígena.  Entre as muitas contribuições sobre o tema aceitas pelos organizadores do pensamento, há reflexões da comunidade Sarayaku, na província de Pastaza, Equador, onde se elaborou um “plano de vida” que sintetiza princípios fundamentais do “bem viver”.

Bem viver parte da expressão indígena andina sumak kawsay, que significa “viver plenamente”. Essas duas palavras tornaram-se mundialmente conhecidas por expressarem uma alternativa ao catastrófico desenvolvimento atual. Como apontado anteriormente, em vez de aumento do PIB, da riqueza individual, do consumo, do sucesso a qualquer preço e da vida em velocidade estonteante, o Bem viver é simplesmente a busca para estar bem consigo, com as outras pessoas e com a natureza.

Ao lado do conceito de Bem viver, pachamama ocupa o lugar de uma representação ligada à terra e à fertilidade, articulando sentidos como nascimento, maternidade, proteção da Terra, o divino e o sagrado. Pachamama (pacha, “terra”; mama, “mãe”) é um termo quéchua, idioma dos aborígenes incas, para quem a divindade traz a imagem de abundância, serenidade e devoção (DUTRA, 2021).

Cinco mulheres em roda, em pé, na mata.

Fonte: Observatório dos Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina ([2022]).
Foto: Eduardo Di Napoli e Marina D. de Souza.

Os 13 princípios da busca de equilíbrio para a comunidade equatoriana que deram origem a essa expressão dizem respeito a:

  • nutrir-se do que é são;
  • beber sentindo o fluxo da vida;
  • dançar em conexão com o Universo;
  • dormir entre um dia e outro;
  • trabalhar alegremente;
  • estar em silêncio meditativo;
  • pensar com a mente e o coração;
  • amar e ser amado;
  • escutar a si, aos outros e à Mãe Terra;
  • falar construtivamente;
  • sonhar pra ter uma melhor realidade;
  • caminhar sentindo-se acompanhado pelas boas energias; e
  • dar e receber.

É difícil resumir a proposta desse conceito, porque ele sintetiza uma sabedoria simples e, ao mesmo tempo, complexa. Para além de um discurso, em muitos países, como o Equador, a Bolívia, o México e a Venezuela, há experiências de reconhecimento desses princípios como uma política de Estado, conforme detalha o vídeo A natureza como sujeito de direito, produzido pela TV UFG.

O global e o local na promoção da saúde
Racismo e (in)justiça ambiental: um olhar crítico sobre a ecologia e o desenvolvimento

No discurso socioeconômico e político vigente, o desenvolvimento é um mobilizador poderoso.
(GÓMEZ, 2002, p.1).

Quem seria contra a ideia de desenvolvimento? Pode parecer incoerente criticar processos que busquem o desenvolvimento de comunidades e grupos, principalmente quando se trata de casos nos quais as pessoas, sujeitos dessa ação, foram historicamente excluídas e privadas dos direitos básicos de vida digna. Contudo, como aponta o professor Jorge Montenegro, é preciso estar atento às intenções que a ideia de desenvolvimento carrega e de que tipo de desenvolvimento estamos falando (GÓMEZ, 2002).

Fonte: Napoli (2019).
Foto: Eduardo Di Napoli.

Agricultora quilombola, que integra o Movimento dos Pequenos e Pequenas Agricultoras, participando do espaço cozinha das tradições, durante o último Congresso Brasileiro de Agroecologia, realizado em 2019, em Sergipe.

Vamos entender melhor essa questão? Ouça o áudio a seguir:

Transcrição do áudio

De um lado, é fundamental que possamos superar as injustiças e as condições precárias de vida mobilizando processos ecológicos (sustentáveis). De outro, é preciso atentarmos para o ideal desenvolvimentista de prosperidade e progresso enraizados nos discursos capitalistas que tornaram-se cada vez mais longe de ser realizado. Em muitos casos, a busca pelo desenvolvimento sustentável surge propondo ações que não geram autonomia para as comunidades, promovem iniciativas que exigem investimentos que beneficiam grupos restritos e geram efeitos concretos muito limitados que não se sustentam  a longo prazo.

Assistimos a uma cooptação do discurso ambientalista e acompanhamos o uso da ideia de desenvolvimento sustentável por empresas que seguem promovendo crimes ambientais e violações dos direitos humanos. Por esse motivo, buscamos aqui contextualizar a ideia de desenvolvimento sustentável, agenda global e Agenda 2030 em uma perspectiva crítica e inscrita na defesa e no protagonismo das comunidades tradicionais e periféricas. Com isso, queremos progressivamente nos distanciar de estratégias ambientais colonizadoras e hegemônicas, geralmente orientadas por referenciais europeus ou norte-americanos que em nada se aproximam das nossas realidades e saberes locais.

Para refletir

Você já se deparou com uma situação de desenvolvimento sustentável com essas características? Saberia quais foram as consequências dessa situação?

O conceito de justiça ambiental se refere ao direito universal de ter acesso a um meio ambiente saudável. Por isso, neste curso abordaremos os conceitos de justiça ambiental como estratégia de promoção da saúde em territórios tradicionais.

Apesar de os efeitos das crises ambientais e das mudanças climáticas atingirem a todas e todos, esses impactos não estão igualmente distribuídos. Ou seja, os impactos da poluição, os desastres causados pela seca, pelas chuvas e outros tantos efeitos não atingem a sociedade de maneira uniforme.

Populações negras, indígenas, pobres e trabalhadoras têm menos recursos financeiros, políticos e de informação para se protegerem. É no território desses grupos que seguem sendo instalados os empreendimentos mais impactantes e é nos territórios dessas comunidades que esses efeitos estão mais presentes.

Cinco mulheres em roda, em pé, na mata.

Fonte: Dionísio e Resende (2019).
Foto: Carú Dionísio e Gilka Resende.

O movimento Catadoras de Mangaba é um exemplo de resistência. É formado quase que exclusivamente por mulheres de uma comunidade tradicional que defende o extrativismo de bases ecológicas da mangaba, em Sergipe, que estava sendo impactado pela diminuição dos ecossistemas em que atuavam.

Entre outros fatores, as comunidades periféricas, do campo e da cidade, ocupam áreas de maior risco, sofrem com menos infraestrutura de serviços básicos e ausência de assistência básica do poder público. Nesse sentido, ficam em perigo a saúde e os modos de vida dessas populações.

A distribuição desses riscos na sociedade atinge principalmente os mais pobres. Os conceitos de justiça e racismo ambiental buscam problematizar soluções sustentáveis que inviabilizam ou não protegem a existência dessas comunidades.

O que é racismo ambiental?

Cinco mulheres em roda, em pé, na mata.

Crédito: Ianah Maia.

Painel Se tem racismo, não tem agroecologia.

O termo racismo ambiental se refere às práticas que ferem o espaço de convívio de um grupo em situação vulnerável e está ligado, geralmente, a obras públicas ou do setor privado. Outra forma de desigualdade relacionada ao racismo ambiental é o acesso à água (ou a falta dela), que já era uma realidade e se mostrou mais presente ao longo da pandemia de covid-19. Muitas famílias em situações de vulnerabilidade ainda enfrentam esse tipo de problema, que implica sérios riscos à saúde.

Assista ao primeiro episódio da série sobre direitos humanos produzida pelo Canal Preto. Nele, as entrevistadas e os entrevistados mostram como a (in)justiça climática está relacionada ao racismo ambiental e de que forma práticas socioeducativas, como a permacultura e a agroecologia, ajudam a romper essa injustiça.

Racismo ambiental
“Unidade na diversidade”: agroecologia e tecnologias sociais como caminhos convergentes

Nossa aposta é que soluções em agroecologia reaplicadas pelo OTSS contribuam para a autonomia das comunidades tradicionais na promoção de sua saúde. Nesse sentido, é fundamental conectar os conteúdos da seção anterior, sobre a crítica à noção de desenvolvimento hegemônico e o conceito de justiça ambiental, com estratégias de transformação social que passam pelo combate ao racismo estrutural. Dessas conexões emerge o conceito de RACISMO AMBIENTAL. Assista ao vídeo com Emanuelle Goes e Mariana Belmont sobre a luta e o direito de morar, plantar e viver sob a perspectiva de gênero.

Mudanças climáticas

A disseminação de tecnologias sociais com alto grau de replicabilidade é um dos caminhos para o empoderamento das comunidades tradicionais e a promoção da saúde em nível local. Entre eles, citamos os tanques de evapotranspiração para destinação de resíduos sanitários, os círculos de bananeira para tratamento de águas cinzas, os biodigestores como alternativa de tratamento sanitário e geração de energia, os sistemas agroflorestais e os bancos de sementes, mas também outras tecnologias que trabalham os processos na transição agroecológica, como a formação de redes, intercâmbios, rodas de saberes, cartografia social, entre outros.

Cinco mulheres em roda, em pé, na mata. Cinco mulheres em roda, em pé, na mata.

Fonte: Flickr.

Ao longo do curso, tentaremos trazer as diversas tecnologias sociais em agroecologia, dando ênfase às práticas que estão sendo utilizadas no território da Bocaina nos diversos projetos desenvolvidos pelo Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT) e pelo Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS).

Não basta tratarmos dos conceitos e problematizarmos os avanços e as fragilidades das estratégias construídas em torno da sustentabilidade; é preciso refletirmos e nos apropriarmos das nossas estratégias de resistência e fortalecimento. Para contribuir com essa apropriação, apresentamos a seguir três iniciativas: um projeto de pesquisa e denúncia coordenado pela Fiocruz, uma rede que integra ações em defesa das comunidades em todo o Brasil e a experiências desenvolvida pelo FCT/OTSS sobre cartografia social. Clique nas imagens para conhecê-las!

Caso tenha interesse em saber mais, acesse o Mapa de conflitos .

Caso tenha interesse em saber mais, acesse o site da RBJA .

Caso tenha interesse em saber mais, acesse os podcasts produzidos pelo Projeto Redes .

Transcrição do áudio

O mapa de injustiça ambiental e saúde no Brasil (Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz)

O conceito de promoção da saúde acoplado ao de justiça ambiental que assumimos implica incorporar:

  • a defesa dos direitos humanos fundamentais;
  • a redução das desigualdades; e
  • o fortalecimento da democracia na defesa da vida e da saúde.

Isso engloba, igualmente, o direito à terra, a alimentos saudáveis, à democracia, à cultura e às tradições, em especial das populações frequentemente vulnerabilizadas e discriminadas. Ou seja, nossa concepção de saúde e ambiente transcende as variáveis do saneamento básico, da contaminação ambiental por poluentes e das doenças e mortes decorrentes desses fatores. Ela está intimamente associada à noção de justiça ambiental e seus movimentos, conforme apregoado no Manifesto de Lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Portanto, defender e promover a saúde significa não somente a construção de ambientes mais saudáveis, mas de uma sociedade mais fraterna, mais igualitária, em que a dignidade humana seja intocável.

Transcrição do áudio

A Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA)

A Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) é uma articulação de grupos e pessoas atuantes contra o racismo e as injustiças ambientais. Somos organizações da sociedade civil, movimentos sociais, movimentos comunitários no campo e na cidade, setores acadêmicos, além de profissionais e militantes que vivenciam, testemunham e combatem violências sociais e ambientais do desenvolvimento brasileiro. Existimos como um fórum de discussões, denúncias, mobilizações e articulação política.

Nossos objetivos são a denúncia de racismo e injustiça ambiental, bem como a proposição de políticas de promoção de justiça ambiental focadas em proteger grupos vulnerabilizados da distribuição desigual de impactos ambientais. Também trabalhamos para potencializar ações desenvolvidas pelos nossos membros, quando voltadas para a resistência a violações socioambientais.

Transcrição do áudio

Projeto Povos (OTSS/FCT)

A cartografia social permite às comunidades desenhar, com a ajuda de profissionais, mapas dos territórios que ocupam. Esse tipo de mapeamento social geralmente envolve populações tradicionais e é um instrumento utilizado para fazer valer os direitos desses grupos frente a grandes empreendimentos, problemas relacionados à grilagem de terras e ao não cumprimento de dispositivos legais que dizem respeito à delimitação de terras indígenas, à titulação de territórios quilombolas e à regularização fundiária de territórios caiçaras. Em vez de informações técnicas, os mapas sociais são construídos de forma participativa e apresentam o cotidiano de uma comunidade em linguagem simples e acessível. Neles, são colocados espaços de roça, rios, lagos, casas, equipamentos sociais – como unidades de saúde e escolas – e outros elementos que as populações envolvidas considerem importantes.

Nessa área, o OTSS promove hoje a maior experiência de cartografia social já realizada na Bocaina: o Projeto Povos. Essa iniciativa visa colocar de vez, no mapa do Brasil, os territórios, identidades e tradições de 64 comunidades tradicionais indígenas, caiçaras e quilombolas de Angra dos Reis (RJ), Paraty (RJ) e Ubatuba (SP). Atuamos também na cartografia social da pesca em Trindade (RJ) e da comunidade caiçara da Praia do Sono (RJ).

O desafio de traduzir as metas e os indicadores globais da Agenda 2030 para realidades locais apresenta um forte paralelo com o desafio de traduzir tecnologias e soluções para a promoção da saúde em escalas locais e em comunidades tradicionais.

Para compreender melhor a relação entre local e global na promoção da saúde e fechar esta seção, assista ao vídeo de Paulo Marchiori Buss (2021), ex-presidente da Fiocruz.

Racismo ambiental