Módulo 2 – Saúde na agenda de desenvolvimento sustentável

O global e o local na promoção da saúde: o uso dos bens naturais e a pandemia de covid-19

A promoção da saúde é concebida como um processo social e político, que inclui ações direcionadas ao fortalecimento das capacidades e habilidades dos indivíduos, mas também às mudanças das condições sociais, ambientais e econômicas para minimizar seu impacto na saúde individual e pública.
(GALLO; NASCIMENTO, 2019, p. 39).

Como você viu até aqui, neste curso tentamos dar alguns passos em direção a uma perspectiva mais integrada para a solução de problemas complexos.

O exercício de alternância entre escalas (o que são políticas globais, como elas são traduzidas no âmbito nacional e local) e setores (como a saúde se relaciona à produção de alimentos e quais as especificidades de comunidades tradicionais) é uma aposta nesse sentido.

Agronegócio, a indústria de alimentos e as pandemias

Foto: latuff

Quando este curso construído pelo OTSS e pelo FCT foi concebido, em dezembro de 2021, ainda estávamos enfrentando desafios mais severos em relação à pandemia: desafios relacionados à vacinação, ao isolamento social e outras incertezas. Não conseguiremos aprofundar os cenários, impactos e desdobramentos ocorridos de lá para cá; contudo, é imprescindível conectarmos nossos estudos sobre a agroecologia com a origem das pandemias.

A gripe aviária, a gripe suína, a obesidade, a fome e a desnutrição, entre outras tantas pandemias, para as quais não existem vacinas, têm em sua origem um modelo predatório de desenvolvimento questionado pela agroecologia. A conjugação entre agroecologia e as tecnologias sociais levanta contradições, aponta os impactos desse modelo e avança ao indicar caminhos propositivos, que possam promover autonomia dos coletivos, liberdade, saúde e bem viver.

Para saber mais

O modelo de desenvolvimento atual coloca o consumo no centro das relações e, consequentemente, quem sabe se promover melhor tem mais chances de se manter no topo desse mercado.

No documentário Muito além do peso , a cineasta Estela Renner analisa a qualidade da alimentação infantil, o quanto têm aumentado os índices de obesidade nas crianças e os efeitos da publicidade de alimentos para esse público. Assista!

Fonte: Feria de Productores (2013).
Foto: Feria de Productores.

A produção de alimentos em harmonia com a natureza é promotora de saúde e bem viver.

Como apontam pesquisadores do Grupo de Trabajo Agroecología Política, do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso), no texto La cruel pandemia, crisis de la modernidad y agudización de la crisis alimentaria en el mundo. Luchas y salidas comunes , durante décadas a agroecologia chamou a atenção para os riscos e a inviabilidade de manter um sistema agroalimentar industrializado. Além de experiências urbanas de agroecologia e de iniciativas protagonizadas por jovens que retornam ao campo, ela ofereceu – graças ao trabalho de agricultores(as), pesquisadores(as), movimentos sociais, camponeses(as) ou indígenas – uma série de alternativas ao sistema agroalimentar hegemônico, e também ao sistema político-econômico vigente (BARRERA BASSOLS et al., [2021]).

A segurança e a soberania alimentar foram levantadas por meio da articulação entre a implantação de sistemas produtivos (sempre orientados pelas tradições das comunidades e pelas técnicas ecológicas organizadas pela agroecologia) e as redes de consumo que promovem mercados solidários organizados a partir de circuitos curtos. Ou seja, quem produz, planta de maneira saudável e comercializa para quem está perto e precisa consumir; e quem precisa consumir prioriza quem planta perto e de maneira saudável. Tudo isso, por meio da troca de saberes e experiências com métodos horizontais, proteção das tradições locais e abordagens científicas que desafiam ou demonstram os preceitos academicistas da ciência.

As agroecologias, como práticas territorializadas ou situadas, incluem a reorganização das relações sociais de moradia, produção, trabalho e cuidado; além de priorizarem e respeitarem as tradições das comunidades e povos tradicionais. É a partir do fortalecimento coletivo e dos laços comunitários em defesa do bem comum que a agroecologia se constrói para muito além de um modo de produção ecológico e um conjunto de tecnologias sociais.

Para aprofundar esses estudos, ouça alguns trechos da carta política Pandemia e Injustiça Ambiental, da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), de agosto de 2020.

Transcrição do áudio

Carta Política – Pandemia e Injustiça Ambiental (Rede Brasileira de Justiça Ambiental), agosto de 2020

O sistema agroalimentar globalizado está no centro da origem de propagação de doenças, e a cadeia industrial de animais amontoados tem contas a acertar. Estudos científicos apontam-na como grande impulsionadora da propagação de vírus e patologias. O mercado agroalimentar se relaciona com uma agricultura de larga escala, nascida na “revolução verde”.

Ela se baseia no uso de agrotóxicos e na desestruturação de modos de vida e conhecimentos comunitários, em prol do avanço de monoculturas e grandes pastagens de gado. No Brasil, abastados atores econômicos envolvidos na produção agrícola à base de veneno promovem a expropriação violenta dos territórios de povos e comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais.

Com a expansão da fronteira agropecuária, vêm os altos índices de desmatamento, mas o problema não se resume a isso. As perdas de práticas de manejo local sustentável – e da diversidade biológica e sociocultural – dos territórios expropriados resultam na desarticulação de hábitats.

Ou seja, a expansão de monoculturas e pastagens desequilibra o meio ambiente, destruindo freios ecológicos da expansão de agentes causadores de doenças. E mais: o sistema agroalimentar mundial responde por quase um quarto das emissões de gases de efeito estufa, protagonizando a aceleração das mudanças climáticas.

O agronegócio brasileiro é responsável, sozinho, por 71% do total nacional de emissões de gases de efeito estufa. O fenômeno de alteração climática mundial, por sua vez, promove a migração atípica de espécies causadoras de doenças, permitindo a expansão e a adaptação para outras regiões em escalas ampliadas e velocidades mais aceleradas.

Além disso, a produção de uma comida cada vez mais química e industrializada afeta a saúde da população consumidora e se relaciona com os próprios fatores de risco da covid-19: diabetes, hipertensão, obesidade e outras doenças cardiovasculares. Uma crítica similar pode ser dirigida ao modelo extrativista mineral. Intensivo em recursos naturais, capital e tecnologia, ele produz impactos socioambientais expressivos e impõe riscos à saúde coletiva dos territórios onde opera, além de permanentes desequilíbrios ecológicos.

Quem são os(as) mais atingidos(as)? As diferenças nas condições de renda, classe, raça, gênero e acesso à infraestrutura geram a distribuição desigual das dores provocadas pela pandemia. O racismo estrutural, mais uma vez, posiciona corpos de pretos e pretas na linha de frente da rota da morte. De acordo com dados do Ministério da Saúde, as pessoas negras sofrem maiores índices de letalidade pelo vírus. Embora representem quase um em cada quatro brasileiros/as afetados/as pela doença, chegam a um em cada três mortos/as pela covid. A situação se explica por contextos sociais de baixa proteção, exposição e dificuldade de acesso aos serviços públicos de saúde.

Não por acaso, em São Paulo, os bairros onde a população negra está concentrada registram maior quantidade de óbitos pela doença. Os meios de prevenir a covid-19 tampouco são acessíveis a todas e todos. Estima-se que 40% dos municípios nordestinos precisam racionar água cotidianamente. Em 2008, somente 46% dos domicílios brasileiros estavam conectados a redes de esgotamento sanitário. Lavar as mãos e manter os hábitos de higiene não são direitos garantidos para toda a população.

Cuidar das condições que sustentam a vida e suportar as violências no âmbito privado também não são aspectos democraticamente distribuídos na sociedade. Causa preocupação a sobrecarga de trabalho doméstico que recai sobre as mulheres no cuidado de pessoas vulneráveis, adoecidas e crianças – que estão, corretamente, longe das escolas no atual momento. A crise sanitária tende a ampliar a concentração de trabalho reprodutivo nas mãos das mulheres e evidencia o histórico despreparo e a negligência dos homens com a vida cotidiana familiar.

Preocupa também o aumento de índices, tais como: 50% na violência doméstica no Rio de Janeiro, e a duplicação de casos de assassinatos de mulheres dentro de casa em São Paulo. Também se sabe dos altos riscos de aumento da violência sexual doméstica – contra mulheres, crianças e jovens – no presente contexto de confinamento. As mulheres são também a maioria entre os profissionais de saúde na linha de frente do cuidado às pessoas com covid-19. Segundo relatório do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), elas representam mais de 80% do setor. Do ponto de vista econômico, preocupam as situações de abandono e vulnerabilidade, falta de acesso a serviços de saúde e renda, além do desamparo no sustento de filhos e filhas em famílias chefiadas por mulheres.

Para saber mais

Caso tenha interesse, acesse a  Carta Política Pandemia e Injustiça Ambiental na íntegra.

Com base no que acabamos de estudar, fica claro que o modelo econômico e de produção atual impacta no clima e contribui para fragilizar a saúde das populações, especialmente aquelas em situação de maior vulnerabilidade. Iniciativas como as da agroecologia, que vão na contramão desse movimento, são essenciais para que a gente possa promover bem viver e saúde, tanto das pessoas quanto do planeta. É para reforçar esses novos caminhos e perspectiva que convidamos você agora a refletir sobre "ideias para adiar o fim do mundo"!