Módulo 4 – Tecnologias sociais para a promoção da saúde

Tecnologias sociais em saúde: a experiência da agroecologia

A perspectiva da agroecologia no OTSS foi construída a muitas mãos e várias experiências contribuíram para que se chegasse a esta definição:

Promove o bem viver, a defesa dos territórios, a soberania e a segurança alimentar e nutricional, além do desenvolvimento socioeconômico e o equilíbrio da vida no planeta. No Observatório, atuamos no suporte ao desenvolvimento de novas técnicas de cultura; fortalecimento das redes de comercialização; suporte à criação de viveiros para a disseminação de espécies nativas e exóticas etc. (OBSERVATÓRIO DOS TERRITÓRIOS SUSTENTÁVEIS E SAUDÁVEIS DA BOCAINA, 2018).

No que tange à agroecologia, tema central do nosso curso, o processo de incubação do OTSS se dá por meio de algumas metodologias, e uma delas é o Plano Agroecológico Territorializado (PAT). O PAT envolve uma série de metodologias, como mapas falados, caminhadas transversais com roteiro de entrevistas, análise econômica e ecológica dos agroecossistemas (metodologia Lume, abordada no Módulo 2), organização de mutirões de manejo, plantio, colheita e beneficiamento, assessoria técnica, parcerias, intercâmbios com iniciativas similares, entre outras.

Além disso, existem alguns eixos transversais comuns que são trabalhados/fortalecidos nas comunidades em que se utiliza a metodologia do PAT:

  • soberania e segurança alimentar e nutricional;
  • beneficiamento;
  • comercialização;
  • manejo e estratégias para as áreas (produção);
  • formação.

Para ilustrar melhor tudo o que foi dito, apresentamos a seguir as ações realizadas com a comunidade do Quilombo do Campinho da Independência, localizado em Paraty/RJ.

Apresentação de caso: Quilombo do Campinho da Independência

A ITS/OTSS tem uma frente de atuação ligada à agroecologia. Essa frente se aproximou do Quilombo do Campinho da Independência, onde já estavam em desenvolvimento algumas iniciativas voltadas para agroecologia, direta ou indiretamente. Diretamente, temos o Projeto Juçara e o projeto Guardiões e guardiãs das sementes da paixão ; de maneira indireta, temos nessa comunidade o restaurante comunitário, os roteiros de turismo de base comunitária, a casa de artesanato, entre outras ações. Todas se apresentavam como iniciativas desenvolvidas e consolidadas pela comunidade.

Fonte: Territórios do Carapitanga (2021, p. 39, 41, 43).

Como discutimos anteriormente, a incubação de uma tecnologia social tem cinco etapas. A forma de realizá-las (metodologias) varia de acordo com a tecnologia social a ser implementada, bem como de acordo com cada comunidade, que tem suas especificidades e, em algumas delas, métodos de lidar com projetos e processos que envolvem parcerias.

No Quilombo do Campinho da Independência, a primeira etapa foi a construção e a pactuação de agenda e atividades de um plano de trabalho entre a assessoria e produtores. Após essa etapa, o diagnóstico contou com visita às roças utilizando uma metodologia denominada de caminhada transversal, que, por sua vez, faz parte de um conjunto de ferramentas de diagnóstico rural participativo. Nas caminhadas, as conversas foram guiadas por um roteiro semiestruturado de perguntas, a fim de obter informações sobre:

  • trajetória da propriedade;
  • manejo de água, solo, floresta e resíduos;
  • conservação de recursos naturais (áreas protegidas, sobreposições de áreas etc.);
  • organização da produção;
  • força de trabalho e origem das rendas;
  • relações da comunidade para fora e para dentro;
  • interação com as dinâmicas sociais locais de trabalho e desenvolvimento: mutirões, institucionais, grupos informais etc.

As caminhadas foram realizadas em cada uma das roças.

Foto: Eduardo Di Napoli.

A etapa seguinte foi o desenvolvimento e a avaliação. Houve apresentação do material coletado nas caminhadas de maneira sistematizada para que, em conjunto com a comunidade, se devolvessem, avaliassem e analisassem as primeiras interações da assessoria com o campo. A sistematização apresentada pela assessoria contou com desenho de mapas, construção de fluxos de entradas e saídas, informações e diálogos complementares: parcerias e interações com outras assessorias.

Além de alguns pontos de atenção, essas etapas permitiram o levantamento dos principais eixos transversais e as demandas e propostas de ações para cada um deles:

Demandas e propostas de ações

  • Reprodução de sementes crioulas de milho, aipim, mandioca e a manutenção de matrizes de espécies arbóreas como uma das estratégias incorporadas no manejo agroecológico. O que incide inclusive na soberania alimentar, sendo compradas de fora apenas sementes de hortaliças.
  • Troca de  conhecimentos, de material genético e de alimentos entre as famílias é uma  prática comum.
  • Relação direta entre saúde, alimentação, produção e hábitos de alimentação.
  • Produção de alimentos agroecológicos para possibilitar que outras pessoas também tenham uma alimentação saudável, fornecendo alimentos de qualidade em espaços como restaurantes, feiras, eventos FCT e outros.

Demandas e propostas de ações

  • A organização e o aperfeiçoamento de planilha de produtos será importante para possibilitar a venda direta coletiva ou individual para consumidores e eventos.
  • Possibilidades de comercialização identificadas:
  • Restaurante, em todas as rodadas percebido como principal espaçode escoamento pelas famílias.
  • Avanço na relação entre as demandas de restaurantes, cardápios eorganização da produção e oferta de produtos das famílias.
  • Entregas diretas para eventos, lista de consumidores.
  • Abastecimento de outras comunidades, como Trindade e Cambury.
  • Feiras.
  • Merenda escolar.
  • A certificação como produto agroecológico, a exemplo das OCS, pode ser uma importante ferramenta para comercialização.
  • É necessário encaminhar reunião com o restaurante comunitário do Quilombo do Campinho, local em que ocorre parte do escoamento da produção local.

Demandas e propostas de ações

  •  A  importância de planejar a produção, inclusive com processos de formação.
  • Princípios importantes do manejo agroecológico adotados, a exemplo da incorporação da matéria orgânica no solo para adubação, garantindo a fertilidade dos solos nas áreas.
  • Podas para entrada deluz sempre que necessário, de acordo com as prioridades estabelecidas nas áreas.
  • Demanda e uso de equipamentos que facilitam tarefas na roça.

Demandas e propostas de ações

  • Investir em partilhas temáticas, oficinas e mutirões como estratégia para construção de conhecimento.
  • Há o desejo tanto de lideranças da AMOQC como do grupo em ter um espaço prático para formação das crianças.
  • Construir e investirem estratégias para o envolvimento da juventude com a agroecologia.

É importante ressaltar, novamente, as especificidades de lugar, comunidade, tecnologia, amadurecimento e desenvolvimento. As etapas, embora bem definidas, não são lineares; no caso do Quilombo do Campinho da Independência pôde-se ver que a etapa de pactuação tinha interação direta com o diagnóstico na medida em que ocorria, de modo que, por vezes, é difícil apontar quando ocorria uma ou outra. Do mesmo modo, as etapas de pactuação, desenvolvimento e avaliação interagem de maneira muito estreita.

Com base nessas definições construídas coletivamente, uma série de atividades e calendários da própria comunidade começam a interagir com o calendário da assessoria, considerando que a terra tem seu próprio tempo de resposta às ações.

É importante destacar também que o Quilombo do Campinho da Independência tem articulação muito forte com universidades, organizações e instituições de quase todas as áreas, o que confere muita potência para a sua atuação no território. A seguir, vamos trazer algumas “colheitas” desse processo, isto é, avanços conquistados nos três eixos a seguir, os quais têm relação ora direta, e ora indireta com o trabalho da frente de agroecologia ITS/OTSS.

Soberania e segurança alimentar

A distribuição de produtos agroecológicos das roças para a campanha Cuidar é Resistir ficou evidente durante o período de isolamento social pela covid-19: a produção para autoconsumo é de extrema importância para essas comunidades. O planejamento da produção perpassa a definição das quantidades que serão comercializadas e para qual mercado. Nesse momento do planejamento, também são definidas as quantidades de autoconsumo. Nesse planejamento não são consideradas as trocas entre comunidades, o que coopera para a diversidade na alimentação local.

Comercialização

No eixo de comercialização, houve avanços da comunidade com o acesso de alguns produtores ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), em uma parceria entre a Associação dos Moradores do Quilombo do Campinho da Independência (AMOQC) e a Associação Agroecológica de Produtores Orgânicos de Paraty (AAPOP). Além dessa parceria para venda institucional para o Pnae, outra iniciativa, fruto da parceria entre essas associações, foi a Cesta da Agricultura Familiar, durante o isolamento social da pandemia de covid-19.

Houve ampliação e diversificação da distribuição de produtos agroecológicos das roças do quilombo para o Restaurante Comunitário do Quilombo do Campinho da Independência, encurtando os circuitos da economia local e aumentando o lastro de recursos locais.

Formação

A formação da juventude em diálogo com outras comunidades é uma colheita muito importante que ainda está gerando desdobramentos potentes e irradiantes para a região e extrapolando limites geográficos. É o resgate de saberes e práticas tradicionais junto aos mais velhos.

Atualmente, o processo de assessoria está em fase de avaliação do que ocorreu até dezembro de 2021 na comunidade, coletando informações relacionadas à agroecologia. O objetivo dessa ação é construir momentos reflexivos e analíticos junto com a comunidade, para redefinir alguns elementos do plano de trabalho.

Um dos acontecimentos para repensar o plano de trabalho são avarias nas roças geradas pela tragédia das chuvas que acometeram a região no 1º semestre de 2022. Outros elementos importantes para a revisão do trabalho e a interação com os produtores são a abertura nos protocolos do isolamento social e a volta da alimentação escolar e de feiras.

Mulher empurrando uma jangada na beira de um rio.

Foto: Eduardo Di Napoli.

Com a exposição teórico-metodológica e prática esperamos que você reflita se conhece uma iniciativa similar ou que tenha algum dos elementos expostos acima. Finalizamos a seção trazendo um material adicional sobre as mulheres nesse processo, tanto como produtoras, quanto como assessoras técnicas.

Para saber mais

Fonte: Territórios do Carapitanga (2021, p. 33).

E qual o papel das mulheres nesse processo?

Uma das maiores dificuldades das mulheres na agroecologia tem a ver com a sobrecarga e o pressuposto de que antes de qualquer outra atividade, as relativas ao cuidado reprodutivo precisam estar em dia.

Será mesmo?

Esse é um grande desafio para a nossa sociedade no século XXI e para a agroecologia não podia ser diferente. A visibilidade e a valorização das atividades das mulheres nos arranjos produtivos, a estruturação desses arranjos, a distribuição da produção, bem como a ampliação das redes de apoio nas tarefas do cuidado à família e o fortalecimento da autonomia, principalmente financeira (no sentido de garantia de renda para as mulheres), são alguns dos desafios a serem superados. Para conhecer uma experiência que caminha na direção de superar alguns desses desafios, assista ao vídeo Caminhos da autonomia , que sintetiza o trabalho realizado entre a Sempreviva Organização Feminista (SOF) e as agricultoras do Vale do Ribeira, que produzem as cadernetas agroecológicas como uma forma de construírem autonomia.