Módulo 1 – Determinação social da saúde, políticas intersetoriais e promoção da saúde

Ecologia de saberes, saúde dos povos indígenas e quilombolas

Mulher empurrando uma jangada na beira de um rio.

Fonte: Observatório dos Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (2020).
Foto: Eduardo Di Napoli/Comunicação OTSS.

Até aqui refletimos sobre os princípios do SUS, conhecemos o conceito de determinação social da saúde e atentamos para o debate sobre a intersetorialidade das políticas públicas. Agora, vamos iniciar a última sessão deste módulo pensando sobre as especificidades das políticas de saúde em comunidades tradicionais, em especial nas populações indígenas e quilombolas.

A organização social dessas populações demanda uma abordagem diferenciada para o alcance do conceito de equidade perseguido pelo Sistema Único de Saúde.

O Decreto n. 7.508, de 28 junho de 2011, determina em seu Art. 11, Parágrafo Único:

A população indígena contará com regramentos diferenciados de acesso, compatíveis com suas especificidades e com a necessidade de assistência integral à sua saúde, de acordo com disposições do Ministério da Saúde (BRASIL, 2011)

Isso significa dizer que o SUS reconhece a necessidade de um tratamento diferenciado em relação à organização, à gestão e à execução da saúde indígena.

Para saber mais

Veja a linha do tempo , que conta a história da saúde indígena no país, feita a partir do artigo Um breve histórico da saúde indígena no Brasil , de Fernandes et al. (2010).

Galpão rústico com pessoas sentadas no chão em roda e uma pessoa em pé falando.

Fonte: Observatório dos Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (2018B).
Foto: Eduardo Di Napoli/Comunicação OTSS.

Como conversamos em nosso primeiro encontro, este curso, em consonância com o que é proposto pelo SUS, busca estratégias de implementação da saúde indígena e quilombola levando em conta os aspectos relativos à promoção da saúde.

Pretendemos fazer isso a partir da lógica da “ecologia de saberes”, um conceito que indica que o diálogo entre os diferentes saberes (científicos, tradicionais, populares, artísticos, entre outros) é capaz de promover novos saberes, mais completos e menos excludentes.

Ecologia de saberes é um conceito difundido a partir das discussões propostas por Boaventura de Sousa Santos (2013), diretor do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. Esse conceito diz que é necessário estabelecer uma relação complementar entre os saberes técnicos, científicos e os populares. Ou seja, implica entender a inter-relação e a potencialidade de diferentes perspectivas para a construção de um “novo” saber contextualizado localmente, o que é um grande desafio.

Assista ao vídeo no qual Boaventura de Sousa Santos (2013) fala um pouco sobre ecologia de saberes e seus principais aspectos na construção do conhecimento.

Vídeo sobre Boaventura de Sousa Santos falando um pouco sobre ecologia dos saberes

No caso específico da discussão sobre políticas de saúde indígena e quilombola, atuar na perspectiva da ecologia de saberes implica respeitar as formas de organização e as práticas seculares dessas populações.

Essa perspectiva também encontra respaldo no Art. 231 da Constituição Federal, no Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (BRASIL, 1988), e também no Decreto n. 6.040, de 7 de fevereiro de 2007 (BRASIL, 2007), especialmente no Art. 3º da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), que institui:

VII - garantir aos povos e comunidades tradicionais o acesso a serviços de saúde de qualidade e adequados às suas características socioculturais, suas necessidades e demandas, com ênfase nas concepções e práticas da medicina tradicional (BRASIL, 2007).

Para entender melhor sobre saúde em comunidades tradicionais na região da Bocaina, é essencial compreender o território. E um dos caminhos para isso é escutar as lideranças locais.

Nino Benite da Silva (2021) é uma liderança Guarani que atua como agente de saúde indígena. Veja o que ele nos diz:

Vídeo Saúde indígena com Nino Benite da Silva

Vagner do Nascimento é coordenador-geral do OTSS. Vamos escutá-lo:

Vídeo Saúde quilombola

Julio Karai (2021), assessor especial indígena do OTSS, também deu um depoimento:

Vídeo Ecologia de saberes na prática

Numa perspectiva de escuta e respeito ao território, este curso busca explorar a potencialidade da ecologia de saberes a partir de soluções de agroecologia que contribuam para o empoderamento de comunidades tradicionais, por meio de tecnologias sociais. Isso é possível desde que essas tecnologias respeitem os seguintes princípios:

  • alto potencial de reaplicação pela comunidade, a partir dos conhecimentos das técnicas construtivas por mão de obra local;
  • baixo custo;
  • solução de demandas concretas;
  • capacidade de gestão e manutenção locais, sem depender de terceiros;
  • diálogo com o conceito da determinação social da saúde.

Fonte: Observatório dos Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (2018a).
Foto: Eduardo Di Napoli/Comunicação OTSS.

Ao longo das quatro últimas décadas, a agroecologia vem se constituindo, no Brasil, a partir da valorização da diversidade de experiências que acontecem por todo o país. É essa troca de experiências e saberes que tem permitido sistematizar um conjunto de bandeiras de lutas do movimento agroecológico. Essas bandeiras são apresentadas a seguir, no sentido de complementar os princípios de tecnologias sociais acima apresentados:

Fonte: Observatório dos Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina.
Foto: Eduardo Di Napoli/Comunicação OTSS.

A escolha da agroecologia como ação norteadora deste curso se deve à sua relação direta na determinação social da saúde (BRASIL, 1990a).

O termo agroecologia é formado pela união do prefixo “agro” com a palavra “ecologia” e se refere a uma agricultura ecológica. Agro, em latim, significa terra cultivável. Já ecologia tem origem grega e quer dizer estudo da casa (do lugar em que se vive). Agroecologia pode ser compreendida, então, como o estudo e o manejo do território para a prática de uma agricultura sustentável.

Com o avanço da produção e da sistematização de conhecimentos agroecológicos, passou-se a compreender a agroecologia como "ecologia de sistemas alimentares". Isto é, que a agroecologia não deve ser pensada somente no manejo de agrossistemas sustentáveis ou em territórios específicos, mas que todo o sistema alimentar (da produção de alimentos até o consumo, e seus resíduos) deve dialogar com os princípios da agroecologia.

Capa do Guia Alimentar da População Brasileira

Outra abordagem, complementar, sistematiza agroecologia como uma ciência produzida a partir da ecologia de saberes, emergindo de múltiplas e diversas práticas agroecológicas organizadas em um movimento político: o movimento agroecológico.

Como exemplo de reconhecimento nacional da importância da agroecologia para a promoção da saúde, citamos o Guia Alimentar da População Brasileira (BRASIL, 2014), publicado pelo Ministério da Saúde em consonância com a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (uma política do SUS). O guia defende o incentivo à transição agroecológica para a promoção de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis.

Organismos internacionais também têm destacado a importância da agroecologia como caminho de agricultura sustentável comprometida com a promoção da segurança alimentar e nutricional. Citamos como exemplos a realização de dois simpósios internacionais sobre agroecologia organizados pela FAO/ONU (em 2014 e 2018) e documentos publicados pelo Comitê de Segurança Alimentar e Nutricional Mundial (COMITÉ DE SEGURIDAD ALIMENTARIA MUNDIAL, 2021, tradução nossa), vinculado à FAO, como as Recomendações sobre políticas relativas aos enfoques agroecológicos e enfoques inovadores em favor da sustentabilidade da agricultura e os sistemas alimentares que melhoram a segurança alimentar e nutricional.

Galpão rústico com pessoas sentadas no chão em roda e uma pessoa em pé falando.
Para saber mais

O OTSS já acumula diversas experiências em agroecologia na região da Bocaina. Visite o site do Observatório para conhecê-las!

Retornando a discussão sobre as comunidades tradicionais, podemos dizer que a saúde indígena no Brasil nunca foi uma questão bem resolvida. Essa pauta não está no centro da agenda de nenhum governo e já foi responsabilidade de diferentes órgãos governamentais. Prova disso é que em 2019 a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) – responsável pelo tema – quase foi extinta.

Por essa razão, é de suma importância discutir soluções que levem ao empoderamento das comunidades, principalmente em relação a soluções de baixa escala e com possibilidade de gestão local, como as soluções de saneamento elencadas no Programa de Saneamento Brasil Rural (PNSR) (FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE, 2019).

O conceito de memória biocultural também é um caminho para esse empoderamento, uma vez que tem sido trabalhado dentro da produção de conhecimento agroecológico justamente para sistematizar e valorizar a importância dos povos e comunidades tradicionais para a agroecologia. Vejamos um vídeo do professor mexicano Narcizo Barrera-Bassols sobre esse tema.

Memória biocultural

Entendemos que esse tipo de ação dialoga diretamente com as potencialidades e restrições discutidas nas temáticas referentes à organização do SUS: determinação social da saúde e, em especial, a intersetorialidade das políticas públicas.