Residentes da ENSP/Fiocruz participam de visita guiada ao Circuito Herança Africana

Atualizado em 02/07/2025


Vivência reafirma compromisso com práticas de cuidado antirracistas e sensíveis à história dos territórios

Residentes do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família da ENSP/Fiocruz participaram, no último dia 27 de junho, do 'Circuito Herança Africana' - uma visita guiada conduzida pelo Instituto Pretos Novos (IPN), que propõe uma imersão no passado escravocrata e nas raízes africanas que marcam a história e o cotidiano do Rio de Janeiro. A atividade integra a Oficina de Reflexão Permanente, com o tema "Saúde da População Negra", que propõe aos residentes refletirem criticamente sobre o racismo estrutural e suas consequências na saúde pública.

O ponto de partida dos alunos foi o Largo da Prainha, no centro da cidade, de onde o grupo percorreu locais emblemáticos da presença africana e da memória da escravidão na antiga capital do país - que foi, durante séculos, o maior porto receptor de africanos escravizados do mundo.

“Cada parada foi um convite à escuta atenta e à revisão das práticas. Entender esse passado é essencial para construir uma atuação comprometida com o cuidado antirracista no SUS”, destacou Ian Maria, residente no Centro de Saúde Escola da ENSP que participou da visita. 

Entre os pontos visitados, o Cais do Valongo — reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Mundial da Humanidade — foi um dos momentos mais impactantes. Ali desembarcaram, entre os séculos XVIII e XIX, mais de um milhão de africanos escravizados. Ainda hoje, o local é símbolo da brutalidade do tráfico transatlântico e da resistência dos povos africanos.

Outros espaços revelaram como, mesmo sob opressão, práticas de cuidado e cura se mantiveram vivas. As casas de zungu, por exemplo, eram locais onde escravizados se alimentavam e recebiam tratamentos baseados em saberes tradicionais com ervas e suporte espiritual — conhecimentos que resistiram no tempo, transmitidos aos terreiros e às religiões afro-brasileiras, como o candomblé.

A realidade precária de higiene da época também foi lembrada na figura do “escravo tigre”, trabalhador que carregava recipientes de dejetos humanos pelas ruas, muitas vezes espalhando sujeira pelo próprio corpo enquanto percorria o terreno irregular da cidade colonial.

Na reta final do circuito, o grupo passou pela Praça da Harmonia, cenário de resistência durante a Revolta da Vacina em 1904. Foi ali que o capoeirista Prata Preta, figura histórica do movimento popular, liderou barricadas contra as medidas sanitárias impostas pelo prefeito Pereira Passos e pelo sanitarista Oswaldo Cruz.

O percurso se encerrou no Instituto Pretos Novos, onde os residentes visitaram o Cemitério dos Pretos Novos, espaço que guarda os restos mortais de africanos que não resistiam aos primeiros dias no Brasil e eram enterrados sem qualquer cerimônia, em valas comuns, com ossos quebrados e queimados.

À tarde, a programação seguiu no Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira (MUHCAB). Iniciamos com uma visita guiada que nos contou que a proposta do museu é diferente do que comumente conhecemos, que geralmente retrata as cultura negra e seus participantes em um lugar de destaque e não subserviência. Uma roda de conversa reuniu profissionais que atuam na linha de frente das práticas antirracistas dentro do SUS e na Academia. A assistente social Luanda Café abriu os relatos, apresentando o Projeto Identidade, iniciativa que discute identidade e reconhecimento racial por meio de atividades em escolas, rodas de conversa e grupos comunitários.

Em seguida, Sophia Rosa, doutoranda e ex-residente, compartilhou como a vivência na residência foi um marco em sua trajetória de conscientização racial. Em um episódio simbólico, uma usuária preferiu ser atendida por ela, mulher negra, do que por profissionais brancos — um gesto que revelou a urgência de racializar o cuidado em saúde.

A psicóloga quilombola Charlene Bandeira trouxe uma pausa para respiração e reflexão coletiva, propondo a importância de práticas clínicas descolonizadas. Ela destacou como a psicologia ainda carrega fortes raízes eurocêntricas, muitas vezes patologizando comportamentos que fogem da norma hegemônica, sem considerar os saberes comunitários e quilombolas que propõem outras formas de cuidado.

Fechando as falas, Lídia, tutora de campo da residência e mestranda na UFRJ, reforçou a importância de criar espaços como aquele, que possibilitam discutir a saúde da população negra dentro da formação em saúde. Para ela, a sensibilidade da coordenação é fundamental para garantir essas oportunidades — ainda raras em muitos programas.

Ao final, alguns residentes foram convidados a participar de uma oficina de jongo, dança afro-brasileira que resistiu como forma de cultura, ancestralidade e luta. Entre passos e cantos, o grupo encerrou o dia reafirmando o compromisso de levar para a prática profissional não apenas a técnica, mas também uma escuta sensível, antirracista e comprometida com a história viva que atravessa o território.